Texto de orientação

EIXO 1: O Mundo Rumo à Psicose

por Ram Mandil


O Eixo 1 de nossa Jornada indica um movimento: o mundo rumo à psicose[1].  Duas observações de início.  Nos pareceu mais indicado não tomar a psicose como uma categoria estanque, mas considera-la a partir do que nela está em continuidade com os sintomas contemporâneos.  Em outras palavras, julgamos ser mais interessante adotar as psicoses como um ponto de partida que nos instrui sobre o que está em jogo para o falasser, para o parlêtre, seja em sua relação com a língua, seja em sua relação com o corpo, como também em relação ao mundo.

Por outro lado, nos demos conta de que a noção de mundo, disso que chamamos de mundo, se foi algo problematizado por Freud, ainda que pontualmente, é um tema presente de forma mais constante ao longo dos escritos e dos seminários de Lacan.  Não pretendemos esgotar aqui tudo que se apresenta em suas elaborações em torno da noção de mundo, mas destacar alguns pontos que nos pareceram pertinentes para a nossa discussão.

O que chamamos de mundo

Freud toma como ponto de partida a questão de saber se a psicanálise, para além de suas implicações práticas e seus efeitos na cultura, estaria em condições de produzir uma “visão de mundo”, uma Weltanshauung.  Apesar de reconhecer os limites da concepção de mundo produzida pela ciência, Freud julga que a psicanálise se vê constrangida a aceita-la, já que para ele “não há outra fonte de conhecimento do mundo senão a elaboração intelectual de observações cuidadosamente checadas, isto é, o que chamamos de pesquisa, não existindo, ao lado dela, nenhum conhecimento derivado de revelação, intuição ou adivinhação.”[2]

Lacan, no entanto, irá mais além dessa perspectiva freudiana e vai dedicar-se, em diversas partes de seu ensino, ao exame disso que chamamos de mundo.  No Seminário 10: a angústia, ele procura demonstrar que o mundo é produto de uma construção que se realiza, que adquire forma no plano imaginário. Tomando como suporte o seu esquema ótico, aquele da reflexão invertida do vaso de flores, Lacan fará a equivalência entre a figura do vaso que se forma como imagem no espelho e o que ele chama de “cena do mundo”.  Para Lacan, o mundo é uma realização imaginária, delimitada por um enquadre simbólico. Seguindo a lógica do estádio do espelho, a imagem que fazemos do mundo se forma a partir dos mesmos elementos que constituem a imagem de nosso próprio corpo.

A referência à “cena do mundo” indica, por sua vez, o seu caráter fantasmático. O mundo se constrói do mesmo modo como as fantasias são constituídas. É o que irá fundamentar a equivalência que Lacan estabelece entre a realidade e a fantasia. Por outro lado, ele irá chamar a atenção para o que, da experiência humana, não se inscreve na cena do mundo, por não ser passível de representação ou de inscrição como imagem no espelho.  Melhor dizendo, para que a cena do mundo se constitua como tal, esse elemento irrepresentável, esse excedente que perturba a harmonia do palco, precisa ser dele extraído ou então recoberto pela dimensão de tela da fantasia. Esse elemento – o real, sob a forma do objeto (a) – distingue-se, portanto, da realidade do mundo, ao mesmo tempo que, por sua extração, é o que permite que isso que chamamos de realidade se organize.

Outros aspectos da interpretação lacaniana da noção de mundo estão presentes no Seminário 20: mais, ainda. Encontramos ali uma crítica à cosmologia como concepção esférica do mundo dotada de um centro, ao mesmo tempo em que ele demonstra a vinculação da ideia de mundo ao discurso filosófico – do mundo como produto de uma representação do sujeito e para o sujeito – confluindo com uma ontologia que, em última instância, se assegura no princípio ordenador do Nome do Pai situado em alguma parte dentro e/ou fora do cosmo.  Mas será também nesse Seminário que Lacan fará uma referência ao mundo como um campo de “sentidos compartilhados”, como “essa boa rotina que faz com que o significado guarde, no fim das contas, sempre o mesmo sentido”. E complementa: “Este sentido é dado pelo sentimento que cada um tem de fazer parte de seu mundo, quer dizer, de sua familiazinha e de tudo que gira ao redor”[3].

A relação mundo e psicoses (Freud, Lacan)  

No entanto, ainda que de modos distintos, tanto Freud quanto Lacan irão fazer menção às situações em que uma “visão de mundo” pode tocar a psicose. Na mesma conferência sobre uma Weltanschauung, Freud irá alertar para o que, a seu ver, são os riscos de conceber o mundo a partir de ilusões guiadas pela satisfação dos desejos.  Freud não ignora que a satisfação dos desejos tenha lugar e valor na experiência humana, como o que se expressa nas artes, nos sistemas religiosos e nos discursos filosóficos. Mas, para ele “seria ilícito e muito impróprio permitir fossem essas reivindicações transferidas para a esfera do conhecimento”. Orientar a busca pelo conhecimento a partir da satisfação dos desejos é, para Freud, adentrar por caminhos “que levam à psicose, seja psicose individual, seja grupal.”[4]

Também Lacan irá fazer referência a uma dimensão coletiva das psicoses em seu texto Questão preliminar a todo tratamento possível das psicoses, ao situar, “no mesmo mirante” da subjetividade delirante, tanto a subjetividade científica quanto o discurso filosófico sobre a liberdade, bem como a visão determinista do real que exclui o acaso, todos esses discursos apoiados, segundo ele , na “crença no Papai Noel”, o que permitiria situá-los “por uma analogia legítima, na categoria da psicose social.” [5] Podemos enxergar aqui uma referência precursora ao “todo mundo é louco, isto é, delirante” que estamos discutindo para o Congresso da AMP, o que se reforça pelo comentário subsequente:  o fato dessa “psicose social” ser compatível com “a chamada boa ordem”,  isso não autoriza o psicanalista “a se fiar em sua própria compatibilidade com essa ordem para se acreditar de posse de uma ideia adequada da realidade, da qual seu paciente se mostraria discrepante”[6].  Em outras palavras, convém ao psicanalista (e ao psiquiatra, porque Lacan ainda mantinha a esperança numa psiquiatria clínica), não fazer do delírio o fundamento do que está em jogo na psicose, porque delirar não é exclusivo a ela.  Em outra passagem, agora no Seminário 3: as psicoses, ele irá fazer nova menção ao mundo regrado “pelo significante maior do Papai Noel”, capaz de absorver, inclusive, os efeitos do progresso da ciência: “com o Papai Noel, isso se arranja sempre, não somente se arranja sempre, mas se arranja bem.[7]”  No entanto, prossegue, “trata-se de que, no psicótico?”.  Trata-se de alguém, dirá, capaz de não crer em Papai Noel. E, com essa descrença, com esse modo de se colocar um pouco de banda, um pouco de través em relação a esse “significante maior” que seria o Nome do Pai, ele nos revela o seu estatuto de ficção.

A decomposição do mundo

No entanto, e tomando a psicose como referência, podemos dizer que, com o declínio do Nome do Pai, com a queda de seu valor referencial como “significante maior”, o que se manifesta na civilização já não se arranja sempre ou já não mais se arranja tão bem. Assistimos por todos os lados os efeitos desse declínio do Nome do Pai como princípio ordenador do mundo. Deixamos de supor qualquer harmonia e, enquanto “cena”, o mundo fragmenta-se em múltiplos palcos. Até mesmo o discurso científico – como Lacan previra no Seminário 20 – já não seria suficiente para sustentar uma visão de mundo. Experimentamos esse abalo, por exemplo, durante o manejo da pandemia.  O discurso científico que supúnhamos suficientemente estabelecido teve que novamente lutar para recuperar a sua hegemonia na condução das medidas; os comitês sanitários em escala global revelaram seu descompasso burocrático diante do estado de urgência que aí se apresentava e até mesmo uma categoria social que supúnhamos estar mais firmemente instalada no discurso científico, como a dos médicos, se mostrou vacilante, impregnada por discursos religiosos e ideológicos que, como sabemos no nosso caso, tiveram consequências desastrosas.

Com o declínio do Nome do Pai, com a revelação cada vez mais pronunciada de seu estatuto de ficção, a inconsistência do grande Outro aparece de forma mais pronunciada, consistência essa antes sustentada pelas “grandes narrativas” que serviam de referência às leituras do mundo. A partir dessa inconsistência manifesta, tudo se relativiza, tudo passa a ser interpretado como conflito de narrativas, como guerra de “storytellings”, criando-se assim “uma atmosfera de um mundo sem real”[8]. Nesse contexto, emergem as teorias conspiratórias de recomposição delirante do Outro, que, como sabemos, encontraram nas redes sociais seu meio ideal de propagação. Vale a pena nos referirmos ao modo como Miller, em “Dès qu´on parle, on complote” (Por falar, conspiramos)[9], se refere à criação do mundo a partir das teorias conspiratórias:

A narrativa pura e simples dos fatos, quaisquer que sejam (…) sempre carrega consigo falhas, incoerências, falta de sentido. Resumindo, traz uma « zona de sombra ». É aí que os conspiracionistas introduzem um elemento que muda tudo: uma intenção, um desejo, uma vontade ativa atribuída a um Grande Outro que é, ao mesmo tempo, multiforme, tentacular e dissimulado. Fazer deslizar esse elemento numa narrativa é suficiente para que tudo se esclareça. O acaso é abolido, substituído por uma necessidade. A partir de então, tudo passa a ter uma causa. Tudo faz sentido. Os ditos se tornam irrefutáveis. Eles se auto validam. A trama da narrativa fecha-se sobre si mesma. Ela é fechada sobre si mesma, como um poema.  

 

Nas discussões em nosso Cartel consideramos importante destacar os efeitos dessa desestruturação do mundo – uma vez abaladas as bases por onde ele se sustentava – sobre a relação do falasser com a língua, com o corpo e também sobre o modo como faz a experiência do sexual. Nossa expectativa é que possamos discutir em nossa Jornada Clínica não apenas esses efeitos, mas também os modos singulares de acesso ao real através da experiência analítica, sem que esse acesso se veja guiado por uma concepção de mundo. Mesmo porque, como vimos com Lacan, toda “visão de mundo” guarda em seu cerne um modo de velamento do real.

 

A relação corpo-mundo

 

Um aspecto presente ao longo das nossas discussões foi a relação corpo-mundo acentuada por Lacan desde seu Estádio do Espelho. Sabemos do percurso por ele proposto que vai da experiência de um corpo fragmentado, desenlaçado, anárquico – são seus termos – para o encontro com uma ideia de unidade por meio do suporte de sua imagem já antecipada no espelho.  É esse o ponto de partida através da qual Lacan fará da imagem do corpo o princípio de toda unidade que o ser humano percebe nos objetos. Cito: “é sempre ao redor da sombra errante de seu próprio eu que vão se estruturando todos os objetos do seu mundo.”[10] Em outras palavras, tudo que é percebido pelo sujeito, tudo que para ele adquire uma qualidade especial é, em certa medida, decorrente da relação que estabelece com sua própria imagem especular.  Para Lacan, esse ponto de partida confere à relação humana com o mundo a sensação de ser algo de “profundamente, inicialmente, inauguralmente lesado.”[11]  Em seu curso “O lugar e o laço”, Miller irá condensar essa correlação estabelecida por Lacan entre corpo e mundo nos seguintes termos: “(…) basta ter um corpo e por ter um corpo, temos um mundo.”[12] E será justamente desse laço entre corpo e mundo que o Imaginário irá se constituir.

 

Essa correlação corpo-mundo se evidencia de modo mais manifesto nas psicoses. No capítulo XI de suas Memórias (“Danos à integridade física através dos milagres”), Schreber descreve as modificações experimentadas em seu corpo como vinculadas à “Ordem do Mundo” e afirma a  sua absoluta convicção “de que a Ordem do Mundo exigia imperiosamente de mim a emasculação, quer isto me agradasse pessoalmente ou não e, portanto, por motivos racionais, nada mais me restava senão reconciliar-me com a ideia de ser transformado em mulher.“[13]

 

Nesse capítulo, Schreber vai descrevendo detalhadamente as alterações de cada parte do seu corpo – de suas “partes sexuais”, dos pelos da barba, da sua estatura, estômago, costelas, coração e daí por diante –  de modo  que seu corpo pudesse adequar-se a esses  desígnios  da Ordem do Mundo.  Sabemos o quanto essa relação com o corpo se regulava por seu temor em ser “deixado largado” pelos raios divinos e como a construção de um corpo feminino será aí a solução encontrada.

 

De modo distinto, temos também a correlação que Antonin Artaud estabelece entre seu corpo e o sonho com um mundo liberado do Juízo de Deus.  Será através da ideia de um “corpo sem órgãos” – matriz para as elucubrações de Deleuze e Guattari a partir do seu Anti-Édipo –  que Artaud vislumbra a possibilidade de desconexão do seu corpo com uma ordem do mundo guiada pelos julgamentos divinos.  Cito:  “O homem é enfermo porque é mal construído. É preciso desnudá-lo para raspar esse animalúnculo que o corrói mortalmente, / deus/ e juntamente com deus, os seus órgãos/ Pois, amarrem-me se quiserem, / mas não existe coisa mais inútil que um órgão./  Quando tiverem / Conseguido fazer um corpo sem órgãos,/  então o terão libertado dos seus automatismos/  e devolvido sua verdadeira liberdade”[14].

 

Numa direção distinta, mas também evocativa dessa relação entre corpo-mundo, podemos nos referir à construção do livro Ulisses, de James Joyce. Desde que o personagem Leopold Bloom entra em cena, Joyce passa a associar cada capítulo do livro a um órgão do corpo humano. Ele não o faz como mera evocação ou metáfora, mas como matriz mesma da escrita do texto, guiado pela correspondência de cada capítulo com as funções de cada um desses órgãos. Em conversa com seu amigo Frank Budgen, Joyce chega a se referir a Ulisses como uma “épica do corpo”.  Isso vai na direção do que Lacan assinala como sendo o “ego de Joyce”, ou seja, de que a ideia que o escritor faz de si como corpo não se apoia sobre a sua relação com a sua imagem corporal, mas sobre a sua escrita.

 

Consistência do corpo, consistência do mundo

 

Uma discussão a ser feita em nossa Jornada diz respeito à relação que o falasser estabelece com seu corpo. Podemos destacar três aspectos que merecem ser considerados em nossas discussões clínicas.

 

Um primeiro, o fato de se “ter um corpo” e não de “ser um corpo”. Ou seja, de que a relação do falasser com o corpo não é da ordem de uma adequação entre o que ele pensa ser  (ou gostaria de ser) e o corpo que ele tem, mas é da ordem de uma aquisição, de uma construção da qual o sujeito toma posse, mantendo com esse corpo uma relação ineliminável de estranheza.

 

Um segundo aspecto é o fato dessa apropriação não se realizar de maneira definitiva. O falasser constantemente se depara com um corpo que tende a sair fora, seja através da experiência de perda de sua consistência – sob as mais variadas formas – seja confrontado com o que para ele se manifesta como o que, do corpo, se manifesta como se fosse algo “fora”.

 

E, terceiro, por decorrência desse segundo aspecto, nos deparamos em nossa clínica com os diferentes modos através dos quais o falasser procura conferir, assegurar a sua consistência corporal.

 

Lacan chama a atenção para o modo privilegiado – mas não único – que a imagem do próprio corpo tem como suporte para essa consistência, algo fundamental para que o falasser possa construir uma ideia de si próprio.

 

Disso decorrem algumas teses que teremos a oportunidade de examinar no curso da Jornada, a saber:

– De que é justamente do fato de ter um corpo (e não de ser um corpo) por onde se enraíza a relação do falasser com as manifestações do seu Imaginário;

– De que relação primordial do falasser com seu corpo é da ordem de uma “adoração”, cabendo examinar os vários sentidos e as diversas práticas dessa adoração;

– E que é justamente a partir dessa relação com seu corpo que o falasser constrói para si uma ideia de mundo.[15]

 

A partir desse ponto, podemos nos interrogar se não haveria uma correspondência entre os efeitos de desestruturação do mundo e os encontros com a perda de consistência corporal que verificamos na clínica contemporânea. Os chamados sintomas contemporâneos não poderiam também ser interpretados como modos de recompor uma consistência – mental, dirá Lacan – do corpo?

 

Numa leitura retrospectiva, podemos considerar que a própria psicanálise se originou desse encontro com as manifestações corporais, no caso, a dos sintomas histéricos – por exemplo, com as conversões – que seriam indícios de uma experiência em que o corpo se apresenta de modo disfuncional ( paralisias, tosses, afasias, cegueiras, disfunções eréteis…), com uma lógica própria que não corresponde à anatomia ou à fisiologia.

 

Por outro lado, a clínica das psicoses nos instrui sobre esses momentos, por vezes dramáticos, por vezes sutis, em que o sujeito se depara com seu corpo como “deixado largado”, excluído da cena do mundo, inclusive através de uma identificação melancólica com o objeto-dejeto, com aquilo que se exclui da montagem do mundo.

 

Sabemos que os recursos para conferir consistência ao corpo através dos discursos estabelecidos encontram seu ponto de apoio primordial na relação com a imagem corporal. Mas também pela clínica das psicoses, sabemos que as maneiras de conferir consistência ao próprio corpo se dão por meio de invenções singulares, imprevistas, muitas vezes se valendo do que se oferece a partir da ciência, da medicina e de toda uma indústria de serviços corporais – que vão dos cosméticos a medicamentos e hormônios, das próteses às cirurgias – que dão acesso a uma sonhada adequação do corpo à uma forma idealizada.

 

No entanto, nossa Jornada deverá considerar os modos como um falasser procura fazer o seu corpo consistir por meio das invenções sinthomáticas que uma análise possa favorecer.  Isso certamente irá passar por uma nova interpretação que o analisante poderá produzir diante da constatação de que a opacidade que se manifesta entre o real do seu  corpo e aquilo que lhe chega através da sua imagem não devem ser interpretadas como sendo da ordem de uma patologia, nem mesmo de uma disforia.

 

Nesse sentido, o ego – reinterpretado pela leitura de Lacan no Seminário 23 como a ideia que alguém faz de si como corpo – será um índice clínico fundamental, ao nível do qual podemos ampliar nosso entendimento da foraclusão – tal como Miller nos propõe em “O Parlamento de Montpellier” – ou seja, de uma foraclusão  considerada, não a partir do registro do Nome do Pai, mas a partir do Imaginário, por exemplo, quando um falasser dá sinais de que não faz a menor ideia de si  próprio como corpo.  Na pista de Joyce, nosso interesse irá recair sobre os modos como um falasser vai constituir para si um corpo e os meios que encontra para favorecer essa constituição.

 

Analisar no mundo rumo à psicose

 

Novos desafios se apresentam hoje para o discurso analítico e somos responsáveis por fazê-lo existir como modo de tratamento para o mal estar na civilização, sem ceder às tentações das terapêuticas adaptativas ou ao sonho de um mundo encantado através da erradicação das fontes do mal. Mas também sem ceder aos discursos diluidores que, ainda que se apresentem como “companheiros de estrada” da psicanálise, no fundo reivindicam que ela abra mão de sua “lâmina cortante” para juntar-se ao “despertar” de um novo tempo.

 

Sabemos que em nossa época um dos modos de responder ao abalo das referências criadas a partir do Nome do Pai se dá pela oferta de novas identidades, por onde um sujeito supõe encontrar respostas ao seu mal-estar.  Nesse terreno das identificações, nos deparamos hoje em nossa clínica com modos de apresentação de um sujeito a partir dos novos significantes carregados de poder de representação: “Eu tenho TDAH” pode ser um cartão de visita, mais do que um diagnóstico. O que nos leva a considerar se o que faz com que um sujeito procure uma análise possa estar associada a uma vacilação nessa identificação.

 

Em relação a esse ponto, acolher a solução encontrada pelo sujeito não autoriza nossa clínica a reduzir-se à uma escuta sem interpretação, nem chancelar justificativas que se apoiam no pressuposto de que um sujeito sempre sabe aquilo que está dizendo. Perspectiva essa que apaga a dimensão fundante do inconsciente que se baseia justamente no encontro com o equívoco, com o mal entendido, com a constatação, pelo ser falante, de que ele não sabe exatamente aquilo que nele se diz.

 

A transferência, hoje

 

Para finalizar, deixamos aqui uma questão: na era do declínio do Nome do Pai e dos encontros com a inexistência do Outro, como situar a transferência? Alguns pontos merecem ser considerados.

 

O primeiro, diz respeito a uma mudança na relação com o saber. Constatamos que o saber, hoje, está literalmente no bolso, que ele se revela mais explicitamente do lado do analisando e que a suposição de saber no campo do Outro não parece justificar o motivo de endereçamento a um analista.

 

Eric Laurent , ao examinar as “ loucuras sob transferência”[16], destaca que o endereçamento ao Outro tem em si uma importância fundamental, bem como os efeitos de retorno desse endereçamento. Entre eles, a possibilidade de seguir o analisante pelos caminhos que vão sendo traçados a partir desse endereçamento.

 

Outro aspecto da transferência que deve ser levado em consideração se dá a partir da indicação de Lacan de que uma análise permite um “fazer verdadeiro” (faire vrai).  Jacques-Alain Miller vê aí uma orientação em relação à transferência no último ensino de Lacan, a qual  Eric Laurent dá curso em suas considerações[17].

 

Uma psicanálise é uma experiência que não visa “fazer ser” a partir do que o sujeito experimenta como falta a ser, mas visa dar forma ao que o falasser experimenta como vazio, como índice da não relação.  Trata-se de dar a esse vazio um valor de significação,  de traçar o seu lugar de “mais ninguém” (personne) e não  preencher de sentido esse lugar demarcado do real. “Fazer verdadeiro” pode ser entendido como um modo de conferir um novo valor de verdade à palavra a partir do encontro com um analista. Não da verdade como estrutura de ficção, mas da verdade em sua dimensão referencial, naquilo que ela aponta o gozo. Ou seja, dar à satisfação do Um, “um acréscimo de significação”, dar ao gozo um valor de verdade referencial, restituindo a possibilidade de nomeá-lo por meio de um significante novo.

 

Para concluir: sabemos que Schreber procurou arranjar para si um mundo onde seria possível viver ao preço de tornar-se mulher de deus e com ele fecundar uma nova raça. Vivemos num mundo onde o sonho de arranjar para si um mundo onde se julgue possível viver ganhou uma nova dimensão. Trata-se agora de mundos produzidos a partir dos algoritmos, fruto de pura operação lógica, mas que tomam a forma de seres imaginários que seguem nossos passos, nos acompanham, registram nossos traços e nossas pegadas pela realidade virtual.  Por um lado, parecem reconstituir o grande Outro, com todos os requintes da paranoia. Por outro, carregam consigo uma outra particularidade. Os algoritmos não apenas nos acompanham, mas supostamente sabem o que desejamos, dão a impressão de se orientar visando a satisfação de cada um. Nesse sentido, podemos dizer que os algoritmos trabalham para a criação de um mundo sob medida, tomando como referência nossas interações com o que se apresenta nas telas, com o que conversamos ao telefone e, por vezes, para nosso espanto, com o que ainda imaginamos estar apenas no registro do pensamento.

 

Em um texto de título quase profético, redigido em 1978, Miller procurou estabelecer o que seriam “Os algoritmos da psicanálise”[18].  Chama de algoritmo, por exemplo, o matema do significante sobre o significado, um algoritmo que só oferece perguntas, porque converte todos os signos em signos problemáticos. Por outro lado, nos informa que não é possível estabelecer um algoritmo do inconsciente, porque não há um procedimento de decifração que fosse capaz de oferecer a boa solução. E, ainda que Lacan tenha formulado um algoritmo da transferência, constata-se que o que se transmite da experiência e o que faz com que alguém se dirija a um analista vai além do que possa se expressar em termos de efeito de sentido.

Por outro lado, e de forma surpreendente, Miller sugere considerar um algoritmo do seu final, algo que interessaria ao passe. Um algoritmo que desse elementos para se avaliar a transformação de um analisante em analista.  Tema esse que certamente também teremos a oportunidade de examinar em nossa próxima Jornada.

[1] Esse texto foi produzido a partir das discussões ocorridas em Cartel, composto por Ana Lydia Santiago, Bernardo Micherif, Fernanda Costa, Paula Pimenta, Ram Mandil (mais-um) e Renata Mendonça.

[2] Freud, S. “A questão de uma Weltanschauung”, Conferência XXXV das Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise 1933[1932]. Edição standard das obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. XXII, 1976, p.194.

[3] Lacan, J. O Seminário livro 20: mais, ainda. (1972-1973). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. p.58

[4] Freud, idem, p.195.

[5] Lacan, J.  “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”. In:  Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. p. 576.

[6] Lacan, idem, p.582-583.

[7] Lacan,J.  O Seminário livro 3: as psicoses (1955-1956). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988. p.361

[8] Miller, J-A. L´Un tout seul. Cours n° 6 – 09/03/2011 ( inédito).

[9] Miller, J-A. « Dès qu’on parle, on complote » .In : Le Point edição de 15/12/2011. Tradução minha. Acessível em AQUI

[10] Lacan, J. O Seminário livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985, p.211.

[11] Lacan, idem, p.212.

[12] Miller, J-A. El lugar y el lazo. Buenos Aires: Paidós, 2013, p.62-63 ( lição de 06/12/2000.

[13] Schreber, D-P. Memórias de um doente dos nervos. Rio de Janeiro: Graal, 1984, p.125-6.

[14] Artaud, A. Para acabar com o juízo de Deus. In: Lins, D. Artaud: O artesão do corpo sem órgãos. São Paulo, SP: Lume, 2011. (Original publicado em 1947).

[15] Em “O fenômeno lacaniano” (1974), Lacan irá expressar isso de modo mais contundente, considerando  a crença que cada um tem de que seu corpo é seu próprio eu:  “cada um acredita ser ele mesmo. É um furo. E, depois, lá fora, há a imagem. E dessa imagem, ele faz um mundo.” Lacan, J.  “O fenômeno lacaniano”. In: Opção Lacaniana, São Paulo: Eolia, n. 68-69, 2014, p.18.

[16]  Laurent, E. “Disrupção do gozo nas loucuras sob transferência”. In: Opção Lacaniana, nº79. São Paulo: Ed. Eolia, 2018. pp.52-63.

[17] Miller, J-A. “En dèça de l´inconscient”. In: La Cause du Désir . Paris: Navarin, n.91, 2015/3. pp. 97-126.

[18] Miller, J-A. “Algorithmes de la psychanalyse” In:. Ornicar?, Paris:Lyse/Seuil, n. 16,  automne 1978. pp.15-24.

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