Texto de orientação

O efeito de retorno à psicose ordinária[1]

por Jacques-Alain Miller


Primeiramente, gostaria de parabenizar Marie-Hélène Brousse pela organização desse seminário anglófono em Paris. Estou verdadeiramente surpreso e muito contente de ver aqui quase cem pessoas de diferentes países. Eu desejava que esse seminário anglófono fosse retomado. Houve há anos uma série em Paris, mas depois o havíamos interrompido. Isso me preocupava e pedi a Marie-Hélène Brousse para relançá-lo. É uma ocasião, importante para mim, de constatar que a audiência do Campo freudiano nos países anglófonos, longe de ter diminuído, aumentou em número e em importância de dez anos para cá. O Campo freudiano não é, a meu ver, suficientemente representado no mundo anglófono – o que temos a intenção de mudar. O Campo freudiano deseja se promover com vigor no mundo anglo-saxão – na Inglaterra, nos Estados Unidos, na Austrália e em muitos outros países onde o inglês é usado para transmitir o ensino de Lacan e nossa pesquisa.

Como título desse seminário, escolhi: “Psicose ordinária”. Embora não seja uma categoria de Lacan, me parece que é uma categoria lacaniana – uma categoria clínica lacaniana. É uma criação que concebo como extraída do que chamamos “o último ensino de Lacan”, ele próprio um efeito do retorno ao desenvolvimento pragmático do seu ensino ao longo dos 30 anos do Seminário. Tenho a intenção de lhes dar, nessa exposição informal sobre o conceito de psicose ordinária, um eco um pouco mais amplo do uso prático que faço desse termo há muitos anos com meus colegas, que contribuíram bastante para lhe dar um contorno mais preciso.

 

América dividida

Freud se fez a famosa pergunta: “o que quer uma mulher?”. Ele a colocou como homem, talvez também como mulher. Apesar dos trinta anos de ensino de Lacan, não temos a resposta, embora tenhamos tentando bastante. Não é então uma questão discriminadora.
Outra pergunta perturbou-me durante anos: “O que querem os americanos?” Tenho a resposta! Uma resposta parcial. Eles querem Slavoj Zizek. Eles querem o Lacan de Slavoj Zizek. Eles o preferem ao Lacan do Campo freudiano, pelo menos no momento.
A questão é de fato a seguinte: eles querem conceitos muito definidos? Ou querem espaço para discutir? Um espaço de disputa? Este é o caso em relação aos conceitos da psicanálise.

Otto Kernberg, por exemplo, dizia que ficava muito inseguro pelo fato de não conseguir apreender a definição exata dos conceitos lacanianos. “Eles mudam o tempo todo”, dizia ele. Vocês podem imaginar o caro Otto – que lia francês – buscando e querendo encontrar a definição do Nome-do-Pai, do significante… que não se resume a uma, mas a uma pluralidade de definições. Ele se deparava com definições contraditórias, ficando assim sempre perdido em Lacan. É muito difícil dar sentido a essas mudanças constantes nas significações dos conceitos de Lacan. Talvez seja porque Otto é de descendência alemã. Sabemos que os prussianos querem definições muito rígidas, mas na verdade, isso também faz parte do espírito americano. Lembro-me de Kernberg, quando terminei uma conferencia em Nova Iorque em 1985 – a única que dei na IPA – me dizendo, numa das perguntas que me fazia: “Mas cinquenta por cento da vida

psíquica são afetos”. Como ele podia mensurar cinquenta por cento da vida psíquica? Isso diz bem de Otto Kernberg! Ele queria definições nítidas. Também é o que, em parte, os americanos querem: um saber bem definido, utilizável, com nomes. Por outro lado, tenho a impressão de que os americanos reclamam espaço para transmitir suas opiniões, para poder dizer: “Você pensa assim, eu penso assado. Tenho minha própria concepção, uma outra ideia”, sem, no entanto, deixar de valorizar o prestígio e o saber. É uma maneira muito democrática de questionar o saber do Outro.

Tenho a impressão de que a alma americana ou o espírito americano está, se posso me permitir dizer, dividido entre um desejo de extrema precisão e os números por um lado e, por outro, o desejo de ser capaz de expressar seu próprio pensamento e seguir suas próprias ideias.

 

A psicose ordinária definida a posteriori

A psicose ordinária se situa mais na segunda vertente. Esta é a razão pela qual a escolhi para relançar esse seminário: a psicose ordinária não tem definição rígida. Todo mundo é bem-vindo para dar sua opinião e sua definição da psicose ordinária. Não inventei um conceito com a psicose ordinária. Inventei uma palavra, inventei uma expressão, inventei um significante, dando a ele um esboço de definição que pudesse atrair diferentes sentidos, diferentes ecos de sentido em torno desse significante. Não ofereci um saber-fazer sobre a utilização desse significante. Fiz a aposta de que esse significante podia provocar um eco no clínico, no profissional. Queria que ele ganhasse amplitude para ver até onde essa expressão podia ir.

Inspirei-me no que Lacan fez com o passe. Vocês sabem que ele chamava o verdadeiro final de análise de “passe”.

Mas ele apenas esboçou uma definição do passe, porque não queria que as pessoas o imitassem. Se você diz que pode reconhecer o final de análise quando o sujeito faz isso ou aquilo, ou diz isso ou aquilo, todo mundo fará isso imediatamente. É o caso na universidade. Se vocês precisam de uma nota, devem dizer as coisas de certa maneira e num certo estilo. Então as pessoas se adaptam a isso e vivem num mundo de sombras, numa “Cidade de fantasmas”, como no artigo de Jean-Louis Gault[2]. Devo lhes confessar que a universidade é uma cidade de fantasmas com pessoas que imitam o que se supõe que elas são. Lacan deu apenas um esboço de definição do passe e propôs que ele fosse experimentado para ver, no momento assim definido, o que surgiria, como as pessoas poderiam contribuir. Eu queria fazer algo desse tipo com a psicose ordinária. Creio que isso atraiu o sentido em potência. Muitas pessoas vieram depois me dizer: “conheço um caso de psicose ordinária!” Se tentamos agora lhe dar uma definição, trata-se de uma definição a posteriori.

 

A clínica binária e o terceiro excluído

Posso agora refletir sobre o motivo que me levou a sentir, na época, a necessidade, a urgência e a utilidade de inventar este sintagma – psicose ordinária. Diria que foi para driblar a rigidez de uma clínica binária: neurose ou psicose.

Vocês sabem que cada significante é fundamentalmente definido, na teoria de Roman Jakobson – que é, atualmente, uma velha teoria – por sua posição em relação a outro significante ou a uma falta de significante. A ideia de Jakobson é uma definição binária do significante. Acentuei, durante anos, que tínhamos basicamente uma clínica binária: neurose ou psicose. Um “ou isso ou aquilo” absoluto. Tínhamos também a perversão, mas ela não pesava da mesma maneira na balança, basicamente porque os verdadeiros perversos não se analisam de fato e, portanto, aqueles que estão em análise são sujeitos que apresentam traços perversos. A perversão é um termo questionável que foi posto por terra pelo movimento gay. Essa categoria tende a ser abandonada.

Assim, nossa clínica tinha um caráter basicamente binário. Resultado: durante anos, víamos clínicos, analistas, psicoterapeutas se perguntarem se seu paciente era neurótico ou psicótico. Quando vocês recebiam esses analistas em supervisão, podiam vê-los voltar, ano após ano, a falar de seu paciente X, e se lhes perguntassem: “Você concluiu se ele é neurótico ou psicótico?”, eles respondiam: “Não, até agora não conclui”. E isso continuava assim durante anos. Não era claramente uma maneira satisfatória de considerar as coisas.

Era nitidamente uma dificuldade nos casos de histeria. Quando não há, na histeria, uma identificação narcísica “suficientemente boa” ao corpo próprio – “suficientemente boa” é um termo winnicotiano do qual gosto muito – porque há frequentemente na histeria alguns sinais de uma certa ausência do corpo, de uma certa desordem do corpo, vocês podem se perguntar se essa desordem vai a ponto de não mais concernir à histeria, mas efetivamente a uma psicose. Vocês veem assim pessoas que tentam, durante anos, decidir de que lado situar seu paciente. Ou então, ao encontrarem sujeitos que testemunham um vazio que experimentam em si mesmos, podem se perguntar se esse vazio não é também histérico. É o sujeito barrado que remete ao nada na neurose? Ou se trata do vazio psicótico, do furo psicótico? Ano após ano,

apesar da diferenciação supostamente absoluta entre a neurose e a psicose fundamentada na foraclusão do Nome-do- Pai, verdadeiro credo lacaniano – “eu te batizo neurótico se há o Nome-do-Pai, e eu te batizo psicótico se ele não existe” – certos casos davam a impressão de se situarem entre as duas. Com o passar do tempo, essa fronteira tornou-se, na supervisão e na prática, espessa. Uma espessura crescente como a que vocês constatam em volta da cintura!

Havia então algo que não andava bem, porque se era uma neurose, não se tratava de uma psicose, ou se era psicose, não se tratava de uma neurose.

A psicose ordinária era uma maneira de introduzir o terceiro excluído pela construção binária, religando-o simultaneamente ao lado direito do binarismo.

Era uma maneira de dizer, por exemplo, que se vocês têm, durante anos, razões para duvidar da neurose do sujeito, podem apostar que é mais um psicótico ordinário. Quando é neurose, vocês devem saber! A contribuição desse conceito era dizer que a neurose não é um fundo de tela (wallpaper). A neurose é uma estrutura muito precisa. Se vocês não reconhecem a estrutura muita precisa da neurose do paciente, podem apostar ou devem tentar apostar que se trata de uma psicose dissimulada, de uma psicose velada.

Não é seguro que a psicose ordinária seja uma categoria objetiva. Vocês devem se perguntar se é uma categoria da coisa-em-si. Podem dizer que a psicose ordinária existe objetivamente na clínica? Não é seguro. A psicose ordinária interessa o saber de vocês, sua possibilidade de conhecer alguma coisa do paciente. Vocês dizem “psicose ordinária” quando não reconhecem sinal evidente de neurose e, assim, são levados a dizer que é uma psicose dissimulada, uma psicose velada. Uma psicose difícil de reconhecer como tal, mas que deduzo de pequenos indícios variados. Trata-se de uma categoria mais epistêmica do que objetiva. Isso concerne à nossa maneira de conhecê-la.

 

A construção lacaniana da psicose nos Escritos

1. O mundo imaginário instável

De qualquer forma, Lacan inicia com a neurose seu texto clássico sobre a psicose nos Escritos, “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”[3]. Ele pensa a psicose na perspectiva da neurose. Deriva a estrutura da psicose daquela da neurose, como uma variação da estrutura fundamental da neurose ou da normalidade. Há uma conexão entre neurose e normalidade: o complexo de Édipo. Em Lacan – e também em Freud – o complexo de Édipo, traduzido por Lacan como metáfora paterna, é o fundamento tanto da realidade quanto da neurose. O complexo de Édipo é o elo entre normalidade e neurose. É possível dizer que a neurose é a normalidade. Uma pessoa supostamente normal é um neurótico que não sofre de sua neurose ou que não sofre muito de sua neurose, ou ainda que não trata sua neurose pela análise, que trata sua neurose vivendo-a. É menos interessante! É mais interessante cuidar de sua neurose pela análise, mas há pessoas que nem sempre pensam nela e continuam a viver assim. Eu me sinto como o doutor Knock, na famosa peça teatral francesa do início do século, que decidiu que todo mundo estava doente sem saber disso.

Qual é a base comum entre neurose e psicose do ponto de vista de Lacan? Qual é o início da vida psíquica? No Lacan clássico, o início da vida psíquica é o que ele chama de imaginário. Todo mundo começa supostamente com o imaginário. Trata-se do Lacan clássico. É duvidoso, porque isso remete à incidência da linguagem. Efetivamente, desde o início, o sujeito está imerso na linguagem. Mas em seu texto clássico sobre a psicose, assim como em quase todos os textos dos Escritos – com exceção dos últimos – ele constrói a dimensão fundamental do sujeito como pertencendo à dimensão imaginária. Trata-se, portanto, do nascimento supostamente comum – seja um futuro neurótico, um futuro normal, um futuro perverso, um futuro psicótico – daquele que habita, poderíamos dizer, o estádio do espelho.
O estádio do espelho é a primeira estrutura do mundo primário do sujeito, o que significa que é um mundo muito instável. O mundo estruturado pelo estádio do espelho é um mundo de transitivismo. Transitivismo quer dizer que você não sabe se foi você ou o outro que fez. Quando a criança bate na outra, diz: “Ele me bateu”. Há uma confusão: “fui eu ou foi ele?”. É um bom exemplo para compreender que se trata de um mundo de areias movediças. É um mundo instável, um mundo sem consistência, um mundo de sombras. Essa é a maneira como, em seu primeiro Seminário, Lacan descreve o mundo primário ou, melhor, a maneira como ele o constrói. Digo “constrói” porque é preciso começar fazendo a abstração da linguagem que está presente desde o início. É a partir daí que ele estrutura a psicose. Para ele, é também o mundo da mãe. É supostamente um mundo cuja força pulsional é a do Desejo da Mãe, o desejo desordenado da mãe em relação ao filho-sujeito. De certa maneira, isso equivale a dizer que a loucura é o mundo primário. É um mundo de loucura.

 

2. A ordem simbólica

A ordem simbólica vem no segundo tempo dessa construção. É no nível simbólico que vocês devem insistir na palavra “ordem”. Vocês seriam tentados a dizer “a ordem imaginária”, “a ordem real”, mas é inexato. Na verdade, isso significa que a ordem chega ao mundo imaginário com o simbólico. A estrutura lacaniana introduz o simbólico – a linguagem, a metáfora paterna – como a potência que impõe a ordem, que impõe a hierarquia, a estrutura, a constância, que estabilizava o mundo imaginário instável. Lacan condensa essa potência, essa força ordenadora do simbólico, no Nome-do-Pai – utilizo a maiúscula P para representar a palavra francesa Père – que é um elemento a mais. É um mais (+) que tem como consequência um menos (-), um gozo a menos. O gozo imaginário, que tornava possível o mundo imaginário, é extraído, subtraído. Vocês encontram, em todos os textos de Lacan, a ideia segundo a qual o gozo é evacuado pelo simbólico. Lacan utiliza essa expressão de diferentes maneiras. É possível falar de extração, de subtração, mas a ideia é sempre a mesma. Quando se introduz o elemento ordenador do Nome-do-Pai, obtém-se uma subtração no nível da libido, do gozo e das pulsões. Nos termos do falo, temos de um lado, o falo completo (Φ) e, do outro, o menos-phi (-φ), que significa “castração”, termo freudiano para essa subtração de gozo.

A partir desse momento, como sabem, Lacan constrói a psicose como uma falta do Nome-do-Pai, P0, e a falta desse falo castrado que ele escreve Φ0. Há dois buracos correlatos no esquema I – devemos escrevê-los assim, com três setas – no nível do gozo, que é de fato um “a mais”.

O gozo imaginário, que é “a mais”, continua a existir; o Nome-do-Pai não é, então, operante. Isso que dizer que o menos-phi não é operante, na verdade é menos-phi zero. Não vou explicar novamente essa construção da psicose em Lacan. Mas o que ele introduz simultaneamente, ao ler o Caso Schreber, é a ideia da metáfora delirante. Em um momento preciso, nos é revelado o fato de que ele não está articulado ao Nome-do-Pai, o que desencadeia sua psicose extraordinária. Após um primeiro tempo de desordem total do seu mundo – um mundo que era anteriormente estabilizado, ele tinha de fato conseguido atingir uma posição bastante elevada como juiz, seu mundo tinha até então sua maneira de se ordenar; mas, ao ser solicitado a responder do ponto de vista do Nome-do-Pai, ele não consegue, o que desencadeia sua psicose extraordinária – observa-se uma espécie de mundo ordenado que vai se reorganizando. Schreber consegue, progressivamente, arranjar para si um mundo onde é possível viver. Lacan diz então que, na verdade, ele não tem uma metáfora paterna, mas bem mais uma metáfora delirante.

De qualquer forma, um delírio é simbólico. Um delírio é um conto simbólico. Um delírio é também capaz de ordenar um mundo. Perguntem se o que ordena nosso mundo não é em grande parte delirante. Se vocês relacionam isso ao saber científico, a essas histórias de um Deus-todo-Poderoso, de mãe, de pai, etc., são levados a dizer que é em parte um delírio. Eu não diria isso – não ousaria – mas as pessoas do Século XVIII ousavam dizer que na verdade era, em parte, um delírio. O Campo freudiano é um delírio, não tem uma existência bem limitada. É alguma coisa para alguns milhares de pessoas que no mundo falam do Campo freudiano, mas na verdade ele não tem existência precisa. Quando vocês leem sobre Maomé – Deus proíbe que eu diga qualquer coisa contra Maomé – que ele partiu sozinho, que trazia uma mensagem divina e a escrevia, esse discurso ordenou um milhão de pessoas no mundo. Era um delírio divino. Na verdade, a hipótese segundo a qual um delírio pode ordenar o mundo não é completamente forçada.

Schreber tinha um delírio privado. Ele não conseguiu fazer do seu delírio um delírio para todos na Prússia do final do século XIX. Precisou privatizar, montando um empreendimento delirante apenas para si mesmo. Então, é possível ter uma ordem simbólica delirante.

 

Do nome próprio ao predicado

Devo falar que, em seu último ensino, Lacan chega a dizer que toda a ordem simbólica é um delírio, incluindo sua própria construção da ordem simbólica. A vida não tem nenhum sentido. Atribuir sentido já é delirante. Trata-se de uma convicção profundamente enraizada em Lacan. Na prática, quando você compreende o que paciente diz, está capturado por seu próprio delírio, pela sua maneira de dar sentido. Seu trabalho como clínico não é compreender o que ele diz. Assim, você não participa do delírio dele. Seu trabalho é apreender sua maneira particular, insólita de dar sentido às coisas, de dar novamente sempre o mesmo sentido às coisas, de dar sentido à repetição em sua vida.

Isso introduz uma mudança de estatuto no Nome-do-Pai. Nos textos clássicos de Lacan, utiliza-se o Nome-do-Pai como nome próprio. Quando se pergunta: “o sujeito tem o Nome-do-Pai ou há foraclusão do Nome-do-Pai?”, o Nome-do- Pai é usado logicamente como nome próprio, o nome próprio de um elemento particular chamado Nome-do-Pai. Seguindo a ideia da ordem simbólica delirante, é possível dizer que o Nome-do-Pai não é mais um nome próprio, mas um predicado definido na lógica simbólica.

NP (X)

Tal elemento funciona como um Nome-do-Pai para um sujeito. Esse elemento é o princípio que ordena seu mundo. Isso não é o Nome-do-Pai, mas tem a sua qualidade, a propriedade. É também muito útil pensar no fato de que Schreber levou uma vida aparentemente normal por cinquenta anos. Sua psicose apenas se desencadeou quando ele tinha cinquenta e um anos, durante o que se chama, em medicina, de climatério da vida do homem. Esta ideia nos ajuda a compreender como seu mundo podia funcionar. O que teria acontecido se Schreber tivesse vindo à análise antes do desencadeamento de sua psicose? Ainda não havia a psicanálise naquela época, mas imaginem que ele tivesse sido tratado por Freud. Talvez antes dos cinquenta e um anos, vocês já teriam podido observar particularidades na construção de seu mundo, que os teria levado a dizer que ele era um psicótico ordinário. Freud não conhecia a psicose ordinária – é claro que ele conhecia muitas coisas bem mais importantes –, mas talvez o que chamamos de psicose ordinária seja uma psicose que não se manifesta até seu desencadeamento. Esta é, por exemplo, uma das maneiras de apreender o conceito, sobre as quais vocês debateram.

A questão incide então sobre o Nome-do-Pai como predicado. Isso significa dizer que ele é um substituto substituído. O Nome-do-Pai se substitui ao Desejo da Mãe, impõe sua ordem ao Desejo da Mãe. E o que chamamos de predicado do Nome-do-Pai é um elemento, uma espécie de make-believe do Nome-do-Pai, um compensatory make-believe (um fazer-crer compensatório) do Nome-do-Pai, um CMB. Vão fazer crer – make-believe – que estamos realizando um estudo altamente científico! E que se deveria dizer que se tem a intenção de observar e de fazer uma lista completa de todas as formas possíveis de CMB na psicose! De fato, é mais difícil que isso, é mais difícil que esse tipo de piada.

 

“Uma desordem […] na junção mais íntima do sentimento de vida no sujeito”.[4]

O que se tenta pinçar falando da psicose ordinária? Ou seja, quando a psicose não é evidente, quando ela não parece ser uma neurose, quando não tem a assinatura da neurose, nem a estabilidade, nem a constância, nem a repetição da neurose. Uma neurose é algo estável, uma formação estável. Quando vocês não constatam – esta é também uma questão percebida pelo clínico – que há elementos bem definidos, bem recortados da neurose, a repetição constante e regular do mesmo, e quando não há nítidos fenômenos de psicose extraordinária, tentam dizer então que é uma psicose, embora ela não seja manifesta, mas ao contrário dissimulada.

Vocês devem pesquisar todos os pequenos indícios. É uma clínica muito delicada. Frequentemente é uma questão de intensidade, uma questão de mais ou menos. Isso os orienta para o que Lacan chamou de “uma desordem provocada na junção mais íntima do sentimento de vida no sujeito”[5]. Trata-se da frase, na qual insisto há anos em meus cursos e nas discussões com meus colegas, que está na página 565 dos Escritos. Na excelente edição anglófona de Bruce Fink, esse termo é traduzido na página 466 como “a disturbance”, uma boa tradução de “désordre”. Ele não usa “trouble”, que seria um termo do DSM, mas “disturbance”: “a disturbance that occured at the inmost juncture of the subject ́s sense of life”[6]. Pois bem, é isto que buscamos na psicose ordinária, essa desordem na junção mais íntima do sentimento de vida no sujeito. “Sense of life” se traduz como “sentimento de vida”. “Sentimento de vida” ou “como você vive a sua própria vida” é um termo muito sincrético. É muito difícil analisá-lo. Os psiquiatras tentaram delinear esse “sentimento de vida”. Eles falam de cinestesia, de sentimento geral do sujeito, de “ser-no- mundo”.

A desordem se situa na maneira como vocês experimentam o mundo que os cerca, na maneira como experimentam seu corpo e no modo de se relacionarem com suas próprias ideias. Mas qual é essa desordem, já que também os neuróticos a experimentam? Um sujeito histérico experimenta essa desordem na relação com seu corpo, um sujeito obsessivo a experimenta em relação às suas ideias. Que desordem é essa que atinge “a junção mais íntima do sentimento de vida no sujeito”? Ela é muito difícil de formular.

 

Uma tripla externalidade

Tentarei organizar essa desordem no sentimento da vida em relação a uma tripla externalidade: uma externalidade social, uma externalidade corporal e uma externalidade subjetiva.

Os indícios devem ser situados nos três registros.


1. Uma externalidade social

A respeito da externalidade social, ou seja, a relação com a realidade na psicose ordinária, a questão é a seguinte: qual é a identificação do sujeito com uma função social, com uma profissão, com seu lugar ao sol, como se diz em inglês? Encontramos o sinal mais claro na relação negativa do sujeito com sua identificação social. Quando vocês devem admitir que o sujeito é incapaz de conquistar seu lugar ao sol, de assumir sua função social. Quando observam um desespero misterioso, uma impotência na relação com essa função. Quando o sujeito não se ajusta, não no sentido da revolta histérica ou da maneira autônoma do obsessivo, mas quando existe uma espécie de fosso que constitui misteriosamente uma barreira invisível. Quando observam o que chamo de desligamento, uma desconexão. Vocês veem então às vezes sujeitos indo de uma desconexão social à outra – desligando-se do mundo dos negócios, desligando- se da família, etc. É um percurso frequente nos esquizofrênicos.

Eu disse: esquizofrenia. Esta pode ser a realidade do sujeito, embora possa parecer uma psicose ordinária, porque isso não é evidente. Na perspectiva de vocês, trata-se de uma psicose ordinária. Uma vez que disseram que é uma psicose ordinária, tentem classificá-la de uma maneira psiquiátrica. Não digam simplesmente que é uma psicose ordinária; devem ir mais longe e reencontrar a clínica psiquiátrica e psicanalítica clássica. Se não fizerem isso – este é o perigo do conceito de psicose ordinária – é o que se chama um “asilo da ignorância”. Ele se torna então um refúgio para não saber. Ao falarmos de psicose ordinária, de qual psicose falamos?

Pudemos, por exemplo, constatar isso no último colóquio das Seções clínicas francófonas [o ciclo UFORCA, Conversations sur des situations subjectives de déprise sociale, na Maison de la Mutualité, em 28 e 29 de junho de 2008] quando, num caso de uma psicose ordinária, um colega – psicanalista e psiquiatra – disse: ”É uma paranoia sensitiva, no sentido de Kretschmer”. Tratava-se de uma psicose ordinária porque ela não era manifesta, mas uma vez que se diz que é uma psicose ordinária, isso significa que é uma psicose. E se é uma psicose, pode ser relacionada às categorias nosográficas clássicas. Tive a impressão que meu colega tinha razão, que nesse caso era uma paranoia sensitiva de Kretschmer. É um convite a ir mais longe.

É o que tenho a dizer sobre a identificação social negativa. Mas vocês também devem ficar atentos diante das identificações sociais positivas na psicose ordinária. Digamos, quando esses sujeitos investem muito no seu trabalho, na sua posição social, quando têm uma identificação bastante intensa com sua posição social. Vocês podem ver então – e isso ocorre constantemente – psicóticos ordinários cuja perda do trabalho desencadeia sua psicose, porque, muito frequentemente, seu trabalho significava bem mais do que um trabalho ou uma maneira de viver. Ter esse trabalho era seu Nome-do-Pai. Lacan diz que, em nossa época, o Nome-do-Pai é o fato de ser nomeado, de ser atribuído a uma função, de ser nomeado para. Atualmente, o Nome-do-Pai é aceder a uma posição social. Constata-se efetivamente que ser membro de uma organização, de uma administração, de um clube pode ser o único princípio do mundo de um psicótico ordinário. Por exemplo, ter um trabalho tem hoje um valor simbólico extremo. As pessoas estão prontas a se estapear por empregos mal remunerados, justamente para ter o valor simbólico de estarem empregadas. Os governos são suficientemente inteligentes para compreender isso claramente e para lhes oferecer empregos irrisoriamente remunerados. O governo francês quer no caso presente, estender isso aos psicólogos e psicoterapeutas. Falamos sobre isso esses dias. Eles querem criar uma nova profissão de psicoterapeutas que seria mais mal remunerada do que a fisioterapia.

Eis o que tenho a dizer em relação à externalidade social com a vertente positiva e negativa de identificação social.

 

2. Uma externalidade corporal

A segunda externalidade diz respeito ao Outro corporal, o corpo como Outro para o sujeito – partindo do princípio: “Você não é um corpo, mas você tem um corpo”, como diz Lacan. Na histeria, há a experiência de estranheza do corpo, o corpo só existe efetivamente na sua cabeça. No corpo do macho há também pelo menos uma parte do corpo que só existe na cabeça, o pênis. Isso é bem conhecido.

Na psicose ordinária, vocês devem ter algo a mais, uma brecha. A desordem mais íntima é essa brecha na qual o corpo se desfaz e onde o sujeito é levado a inventar para si laços artificiais para apropriar-se de seu corpo, para “prender” (serrer) seu corpo a ele mesmo. Para dizê-lo num termo de mecânica, ele tem necessidade de um grampo para se sustentar com seu corpo.

A dificuldade reside no fato de que todos esses meios artificiais que pareciam anormais, são banalizados atualmente. Os piercings de joias incrustadas estão hoje em dia na moda. As tatuagens também. A moda é claramente inspirada na psicose ordinária. Certos usos das tatuagens são um critério da psicose ordinária quando vocês sentem que, para o sujeito, é uma maneira de prender seu corpo a si mesmo. Esse elemento suplementar faz função de Nome-do- Pai. Uma tatuagem pode ser um Nome-do-Pai na relação que um sujeito tem com seu corpo. Como comparar isso à histeria? Não podemos falar senão em termos de tonalidade – isso não tem o mesmo tom – e em termos de excesso – isso excede as possibilidades da histeria. A histeria é restringida pelos limites da neurose, ela é limitada pelo menos-phi. Apesar da revolta e do desespero, a histeria é sempre submetida à restrição, enquanto vocês sentem o infinito na falha presente na relação do psicótico ordinário com seu corpo.

 

3. Uma externalidade subjetiva

Não discutirei a vida sexual. Após a realidade social – o Outro social – e o Outro corporal, falarei do Outro subjetivo. O sinal mais frequente disso é observado na experiência do vazio, de vacuidade, do vago no psicótico ordinário. Podemos encontrar isso em diversos casos de neurose, mas na psicose ordinária se busca um índice do vazio e do vago de natureza não dialética. Nesse caso, há uma fixidez especial desse índice.

Gostaria também de desenvolver aqui a relação com as ideias, mas deixo isso de lado para uma próxima vez.

Vocês devem também procurar a fixidez da identificação com o objeto a como dejeto. A identificação não é simbólica, mas real, porque ultrapassa a metáfora. O sujeito pode se transformar num rebotalho, negligenciando a si mesmo ao ponto mais extremo. Digo que é uma identificação real, pois o sujeito vai na direção de realizar o dejeto sobre a sua pessoa. Finalmente, pode defender-se disso através de um maneirismo extremo. Podemos ter então dois extremos. Posso me referir aqui à exposição de Pierre-Gilles Guégen[7] sobre Genet. Vocês se lembram que Pierre-Gilles Guégen falou da identificação não dialética de Genet ao dejeto. Eu introduziria também uma referência à exposição de Jean-Louis Gault[8] sobre o parceiro de seu analisando. Ele disse que o verdadeiro parceiro de vida desse sujeito não era na verdade uma pessoa, mas bem mais a própria linguagem; vocês podem ver nesse sujeito um eco especial da fala do Outro. Na neurose também encontramos isso, mas no caso de Jean-Louis Gault, vemos uma espécie de estigma produzido por cada enunciado desses outros. De fato, trata-se de uma relação fundamental não com uma pessoa, mas com a linguagem.

Eu poderia me referir ao caso de Julia Richards que vocês ouvirão na sexta-feira: “Uma dialética capitalista no caso de uma psicose ordinária”[9]. É um caso no qual o sujeito se apresenta com a demanda de “recuperar os dez por cento que [lhe] faltam sempre para poder ser novamente são”. Nessa maneira de se apresentar, podemos ver de entrada que há a sensação de não ser sadio. Ele diz isso de início, pois o demanda com uma precisão kernberguiana – Kernberg sabe que os afetos representam cinquenta por cento! Pois bem, esse sujeito sabe que precisa de dez por cento a mais! Suponho que ele é americano! Ele nos dá uma precisão com números. Nessa primeira frase pela qual ele se apresenta, podemos ver seu delírio. Os dez por cento de delírio. “Faltam-me dez por cento!”. Há alguma coisa desviada, que ele atribui a um número. “Faltam-me dez por cento de castração” [risos]. Não é engraçado; nas conferências clínicas, as pessoas riem muito de coisas que não são engraçadas. Esse sujeito também diz isto: “Por que haveria um Deus benévolo? Sou sortudo, e isso explica esse sudário funesto, essa paranoia… Eu não deveria me queixar tanto” – conectado à referencia a Deus. É também uma pequena chave que nos permite entender que seu parceiro é Deus. Não importa que ele tenha dito que sua vida está sob um “sudário funesto“ – o que também pode ser dito por um neurótico romântico – mas, clinicamente, isso pende mais para a psicose. Quando ele diz adiante que “o centro não se sustenta, tudo se desagrega, é científico”, todos os seus labirintos de frases parecem condensar a mesma ausência em seu centro. Julia Richards acrescenta: “seu ponto mais sólido de identificação, embora imaginário, é construído com cada fragmento de identificação paterna à sua disposição”. Tudo isso assinala a psicose ordinária, as identificações são construídas com um bricabraque. Perguntei como traduzir “bric-à-brac” em inglês antes da exposição. Não conhecia esta tradução: “flotsam and jetsam”. Gostei muito. Mr. Flotsam and Dr. Jetsam!

 

As consequências teóricas da psicose ordinária

Tenho a impressão de que as consequências teóricas da psicose ordinária vão em direções opostas.

Uma direção nos conduz a uma afinação do conceito de neurose. Como disse, a neurose é uma estrutura particular, não é um fundo de tela (wallpaper). Vocês precisam de certos critérios para dizer “é uma neurose”: uma relação com o Nome-do-Pai, não um Nome-do-Pai; devem encontrar algumas provas da existência do menos-phi, da relação com a castração, com a impotência e a impossibilidade. Deve haver – para utilizar os termos freudianos da segunda tópica – uma diferenciação nítida entre Eu e Isso, entre os significantes e as pulsões; um supereu claramente traçado. Se não existe tudo isso e ainda outros sinais, não é uma neurose, trata-se de outra coisa.

Numa direção então somos levados a apurar o conceito de neurose, mas em outra – essa é a consequência oposta – somos conduzidos a uma generalização do conceito de psicose. Lacan segue essa direção. Essa generalização da psicose significa que não existe na verdade o Nome-do-Pai. Ele não existe. O Nome-do-Pai é um predicado, sempre é um predicado. Sempre é um elemento específico entre outros que, para um determinado sujeito, funciona como um Nome-do- Pai. Ao dizerem isso, vocês apagam a diferença entre neurose e psicose. É uma perspectiva consoante com “Todo mundo é louco”, com “Todo mundo delira à sua maneira”. Lacan o escreve em 1978. Comentei essa frase nas últimas aulas do meu curso desse ano, “Todo mundo é louco, ou seja, delirante”. Esse não é o único ponto de vista, mas num certo nível, a clínica é assim. Você não pode funcionar como psicanalista se não está consciente de que aquilo que sabe, seu mundo, é delirante – fantasístico, podemos dizer, mas fantasístico significa justamente delirante. Ser psicanalista é saber que seu próprio mundo, sua própria fantasia, sua maneira de fazer sentido é delirante. Essa é a razão pela qual vocês tentam abandoná-la justamente para perceber o delírio próprio de seu paciente, sua maneira de fazer sentido.

Bom, percebi ter sido seguido durante uma hora e meia, com atenção no que digo.

Perguntas do público

Roger Litten – Acompanhei com grande interesse o que você disse, particularmente o que pontuou: sua advertência contra o “fazer-sentido”. No entanto, há alguma coisa que não faz sentido para mim. Há quase uma contradição entre os dois eixos diferentes que você seguiu. Começando com a clínica binária inicial – a distinção entre neurose e psicose – e com a emergência, podemos dizer, da noção de psicose ordinária, conduzindo a uma ampliação ou a um obscurecimento da distinção entre neurose e psicose. Em seguida, você tomou por outro lado, bastante cuidado de resituar o conceito de psicose ordinária na clínica psiquiátrica e binária.

Jacques-Alain Miller – De fato, eu o fiz assim: disse Neurose/Psicose com espessamento da fronteira…

E depois fiz isto…

… Retorno às psicoses.

Roger Litten – Então, de certa maneira, pouco importa o espessamento dessa fronteira, pois a psicose ordinária deve ser situada no lado das psicoses. Desculpe-me obscurecer o que você esclareceu. Então, a tendência quase oposta é aceitar a modificação do conceito de neurose, na medida em que ela se tornaria uma estrutura muito específica. Você disse isso de uma maneira divertida: a neurose não é mais a tela de fundo (wallpaper). A psicose é o fundo de tela (wallpaper), a neurose quase dá lugar a uma modificação específica do Nome-do-Pai contra a possibilidade de emergência da psicose. Tem-se quase simultaneamente a distinção da clínica binária e o obscurecimento dessa distinção. Eu me pergunto se há algo que eu não entendi.

Jacques-Alain Miller – Na neurose, o Nome-do-Pai está em seu lugar. O Nome-do-Pai tem seu lugar ao sol e o sol é uma representação do Nome-do-Pai. Supõe-se que na psicose, quando ela é detectada e construída à maneira lacaniana clássica, há um furo nesse lugar. É uma diferença nítida.

O Nome-do-Pai está ali (na coluna à esquerda) enquanto aqui (na coluna do meio), ele não está. Na psicose ordinária, não há o Nome-do-Pai mas há alguma coisa, um aparelho suplementar.

É possível dizer então que é uma terceira estrutura. De fato, existe na coluna à esquerda alguma coisa, enquanto que na do centro, ela não existe. Já na psicose ordinária (coluna à direita) há alguma coisa que se ajusta mais ou menos. Na realidade é a mesma estrutura (da coluna central). No fim das contas, na psicose, quando não se trata de uma catatonia completa, há sempre algo que torna possível para o sujeito se virar ou continuar a sobreviver. De certa maneira, o verdadeiro Nome-do-Pai não vale mais que isto, é simplesmente um make-believe que funciona.

Então, consegui ter uma clínica binária, uma clínica ternária e uma clínica unitária, as três em uma. Como a Santíssima Trindade!

Nem todas as psicoses assumem a forma de uma psicose desencadeada, explodida. Existem psicóticos que poderão viver toda a sua vida de psicótico tão calmamente quanto na psicose ordinária. Há psicoses adormecidas, como existem espiões adormecidos, que jamais acordarão. Há diferença entre as psicoses que podem ser desencadeadas e as que não podem. A psicose é um vasto continente, um continente imenso. Observem a diferença entre um bom paranoico, requintado e forte que constrói de fato um mundo para ele e para os outros, e um esquizofrênico que não pode sair do seu quarto. Nomeamos tudo isso de psicose.

Quando se trata de uma paranoia, o make-believe do Nome-do-Pai é melhor do que o seu, ele é mais sólido. Espera-se que, ao receber um paranoico em seu consultório, você não o classifique como psicótico ordinário, pois percebe a psicose. Mas há alguns, do gênero paranoia sensitiva como mencionei anteriormente, que não são nítidos desde o começo. Somente após três anos de análise, o analista percebeu algo estranho que indicava a direção oposta, percebeu que o sujeito construía, a cada dia, sua paranoia. Há esquizofrênicos socialmente desconectados, enquanto os paranoicos são totalmente conectados socialmente. Algumas das grandes organizações são frequentemente dirigidas por poderosos psicóticos, cuja identificação é supersocial. Portanto, o campo das psicoses é imenso.

A referência do desencadeamento serve quando se trata desse tipo de psicose compensado com um CMB. Em certo momento, o make-believe, o “fazer-crer”, cai, é cortado. O mundo do sujeito é arruinado, o desencadeamento é então manifesto. Depois, o sujeito pode se reorganizar tão bem quanto antes, ou seja, com um déficit – da ordem de um “não suficientemente bom” – que desconecta progressivamente o sujeito da realidade social.

Schreber apresentava isso claramente. Tinha uma identificação compensatória, mas, após ser ter atingido o ápice, seu mundo se esmigalha. Depois, consegue ser um bom paciente, segundo os relatórios médicos, consegue retomar suas conversas com sua mulher e escrever seu livro. Ele se torna escritor. Após o desencadeamento, consegue se restabelecer numa espécie de atividade compensatória.

A psicose ordinária evidencia a existência de “uma desordem na junção mais íntima do sentimento de vida no sujeito”. Isso significa que é possível conectar todos os pequenos detalhes, que parecem distantes uns dos outros, a uma desordem central. Trata-se então de ordenar o caso. Nos casos ditos borderline, se diz que não parecem ser nem uma psicose nem uma neurose. Não cremos nisso. A categoria da psicose ordinária se origina da prática, das dificuldades práticas. Se vocês não reconhecem uma neurose e se não há sinais evidentes de psicose, procurem os pequenos sinais. É uma clínica dos pequenos indícios de foraclusão. Por exemplo, na breve lista de pequenos sinais que apresentei, vimos que uma identificação social ao trabalho é normal. Mas uma intensificação da identificação com o trabalho pode indicar outra direção. É uma clínica da tonalidade. É o uso disso. Mas a psicose ordinária deve ser redutível a uma forma clássica de psicose ou a uma forma original de psicose.

Um participante vindo de Israel – Essa concepção nos conduz ao conceito do sujeito como defesa. Todas as estruturas são defesas, mas defesas contra o quê? Qual é o estatuto disso contra o que nos defendemos?

Jacques-Alain Miller – Mencionei a palavra “defesa” apenas uma vez. Foi você quem escolheu fazer dela um Nome- do-Pai dessa exposição! A ideia geral é que nos defendemos contra o real, contra o que não podemos tornar sensato, ou contra o que nos torna loucamente sensatos. Apenas em nossos sonhos ressurge o que não tem sentido. Na verdade, os sonhos têm sentido, mas os pesadelos que nos fazem acordar, geralmente o fazem partir de um elemento fora-do- sentido. Neles se toca talvez mais de perto a verdade. É claro que os delírios são construídos em torno desse real que não tem sentido, e esse fora-do-sentido aparece e produz furos no discurso do paciente. Mesmo na apresentação de pacientes de uma hora, podemos ver essas setas que Lacan desenhou no esquema I, transpassando o discurso do paciente. O discurso do paciente é tecido em torno do real. Vocês podem mesmo nomeá-lo uma defesa.

Vyacheslav Tsapkin – Pessoalmente, partindo da minha experiência clínica, descobri que o conceito de psicose ordinária é uma ideia brilhante, muito inventiva, mas gostaria justamente de informá-lo da existência de certos precedentes pouco agradáveis a esse respeito. Isso decorre do lugar comum do qual os psiquiatras teriam seriamente abusado na União Soviética. Há nisso um pano-de-fundo teórico. Na base, havia a teoria de Andrei Snezknevsky que comportava a ideia de psicose de progressão lenta. Tal ideia teve duas consequências sociais. Por um lado, durante esses anos soviéticos, os psiquiatras buscavam encontrar indícios menores. Eles perguntavam: “Qual é seu autor preferido?”, e se a resposta fosse: “Bem, gosto muito de Kafka”, o psiquiatra não tinha a menor dúvida sobre o diagnóstico. Desse modo, os dissidentes eram considerados psicóticos por razões óbvias. Como segunda consequência, ainda hoje – isso é específico da Escola de Psiquiatria de Moscou, clínica psiquiátrica na qual trabalhei durante anos – eles tratam os pacientes neuróticos como psicóticos, ministrando-lhes, apesar de serem neuróticos, grandes doses de neurolépticos, porque o diagnóstico preferido da Escola de Snezhnevsky, a Escola de Psiquiatria de Moscou, era a esquizofrenia com aparência de neurose, ou uma psicopatia com aparência de esquizofrenia.

Jacques-Alain Miller – Por anos, discordei da ideia de uma psicose não desencadeada. Não gostava dessa ideia de psicose não desencadeada por temer o abuso da noção de psicose adormecida. Mas os fatos clínicos estão aí. Quando se tem uma psicose que se desencadeia, o período que antecede ao desencadeamento é de psicose não desencadeada. Eu era a favor do balizamento da psicose adormecida que podia se desencadear. Era clinicamente necessário. O passo a mais é compreender que certas psicoses não conduzem a um desencadeamento: psicoses que apresentam uma desordem no ponto de junção mais íntimo dos sujeitos que evoluem sem barulho, sem explosão, mas com um furo, um desvio ou uma desconexão que se perpetua.

Eu me lembro bem do psiquiatra soviético que deu seu diagnóstico ao leitor de Kafka, o que foi destacado em 1992. A União soviética era em si um delírio! E de fato, isso desapareceu completamente! Era uma realidade delirante. Foi o sonho de Lênin durante setenta anos!

Thomas Svolos – Na clínica freudiana, pelo apego de Freud ao Pai e ao complexo de Édipo, a neurose estava no centro da clínica; quanto às psicoses extraordinárias podemos apenas ratear em relação a elas. Creio que com a clínica da psicose ordinária, temos uma verdadeira concepção lacaniana da psicose extraída do trabalho de Lacan, que nos deu uma clareza sobre a psicose. Podemos ver atualmente as velhas fórmulas que havíamos adotado – esquizofrenia, mania, paranoia – como variantes da psicose ou como tipos de psicose, mas a psicose ordinária elucidou algo mais básico sobre as psicoses. Digo isso a partir do trabalho clínico. Tomando uma categoria como esquizofrenia, devemos compreender os momentos entre os episódios como sinais de uma esquizofrenia adormecida, silenciosa ou latente, ou devemos tomá-los como uma psicose ordinária? Em outras palavras, penso que se pode ter uma noção restrita e específica da psicose ordinária, à qual Marie-Hélène Brousse[10] fez alusão, ou seja, a psicose ordinária banal, muito estável e bem delimitada – mas a noção de psicose ordinária abre para uma teoria mais geral das psicoses, a partir da qual é possível articular a estrutura específica da esquizofrenia ou da paranoia. A utilidade do conceito se situa na maneira com que amplia nossa capacidade de conceituar a psicose e leva a refletir sobre as vias de estabilização de um modo que não existia anteriormente na literatura. A literatura dos anos 60 ou dos anos 70 sobre a psicose parece uma literatura muito diferente daquela dos dez últimos anos. Penso que o projeto de pesquisa desembocou numa noção mais geral das psicoses.

Jacques-Alain Miller – Concordo. Em relação a Freud, ele não era evidentemente psiquiatra. Estudou Schreber através de suas obras. Mas teve um caso de psicose ordinária – O Homem dos lobos. Ele era psicótico, mas se tratava de uma psicose ordinária porque apresentava muitos traços de neurose. Ele ajudou Freud a esclarecer as neuroses. Ao lerem Freud, podem duvidar de sua psicose, mas quando seguem o desenvolvimento de Ruth Mack Brunswick é difícil duvidar disso. Há muito tempo atrás, comentei, por um ano, com meus colegas o caso do Homem dos lobos. Alguns diziam que ele era neurótico, outros que era psicótico, e meu prazer era deixar isso em suspenso porque provocou grande interesse, numerosas observações interessantes da parte dos meus colegas. De qualquer forma, o ponto de basta não está no livro de Freud, mas no livro de Mack Brunswick[11].

Penny Georgiou – Minha questão se relaciona à eventualidade de poder esclarecer ou não alguma coisa sobre o desencadeamento. Nessa segunda-feira, houve uma discussão a respeito dessas psicoses sobre as quais nos perguntamos se eram ou não desencadeadas. Havia uma questão sobre a diferença entre os episódios de descompensação, que são a erupção do fenômeno, e o desencadeamento estrutural da psicose.

Jacques-Alain Miller – Creio ter respondido à questão dizendo que quando se vai, pela primeira vez, de uma situação CMB à abertura como um buraco, a um buraco, e isso continua sem parar, vocês têm um desencadeamento. Há “descompensações múltiplas” quando vocês têm um pattern repetitivo que é compensado ininterruptamente. Não falamos então de desencadeamento. Diz-se “desencadeada” quando isso se produz de uma vez. Por outro lado, vocês têm o que pode ser chamado em termos desenvolvimentistas de “psicose evolutiva”. Vemos psicoses com um corte e psicoses com um declínio, quando se trata de um processo contínuo, de uma psicose evolutiva.

Manya Steinkoler – Você evocou a sexualidade, mas não falou dela. Falou do Outro corporal, do Outro social, etc. Qual é a sexualidade de uma psicose não desencadeada?

Jacques-Alain Miller – A sexualidade não é típica. Não há vida sexual típica. Vocês poderiam fazer uma lista de certas experiências estranhas na vida sexual. Publicamos um livro sobre diversos casos clínicos, intitulado “L ́amour dans les psychoses”[12], em que temos diferentes abordagens das maneiras de viver sua sexualidade. Nos homens há, às vezes, um empuxo-à-mulher através do ato sexual. Às vezes há ao contrário, uma sexualidade que permite se reapropriar do seu corpo. Às vezes, o corpo se fragmenta. Não há nada específico. Busquem simplesmente uma desordem no ponto de junção mais íntimo do ato sexual, pois geralmente a encontramos.

X – Pergunta sobre o desencadeamento como encontro com Um-Pai, e a generalização desse encontro na psicose ordinária como sendo algo que vem interromper o CMB.

Jacques-Alain Miller – Quando falamos de CMB trata-se de uma compensação da foraclusão do Nome-do-Pai. Então, supostamente, para haver o desencadeamento dessa psicose é preciso haver um elemento que vem em terceiro lugar sob a modalidade de Um-Pai. Quando supomos que há uma foraclusão do Nome-do-Pai, supomos que não há necessariamente Um-Pai, mas alguma coisa que ocupa o lugar ternário no laço com o sujeito.

Tradução: Elisa Monteiro

[1] Miller, J.-A. (janeiro 2009). “Effet retour sur la psychose ordinaire”. In Quarto – Retour sur la psychose ordinaire, (94/95). Bruxelles: Ecóle de la Cause freudiènne, pp. 40-51. Texto transcrito inicialmente em inglês por Adrian Price, traduzido para o francês por Marie Brémond e estabelecido por Yves Vanderveken. Revisto pelo autor, não corrigido.
[2] Gault, J.-L. Ibidem, pp.66-71.
[3] Lacan, J. (1998[1957-1958]). “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose”. In Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., pp. 537-590.
[4] Idem. Ibidem, p. 565.
[5] Idem. Ibidem.
[6] Idem. (2007[1957-1958]). Ecrits: The First Complete Edition in English. Translated by Bruce Fink: W.W. Norton & Company, p. 466.
[7] Guéguen, P.-G. (janeiro 2009). Op. cit., pp. 29-33.
[8] Gault, J.-L. (janeiro 2009). Op. cit., pp. 66-71.
[9] Richards, J. (janeiro 2009). Op. cit., pp. 104-107.
[10] Brousse, M.-H.(janeiro 2009). Op. cit., pp. 10-15.
[11] Brunswick, R.M. (1981[1928]). “Supplément à ‘Extrait de l´histoire d’une névrose infantile’ de Freud”. In L´Homme aux Loups par ses psychanalystes et par lui-même. Paris: Gallimard, pp. 268-313. Opção Lacaniana Online Efeito do retorno à psicose ordinária 30
[12] Miller, J.-A. [et. al]. (2004). L´amour dans les psychoses. Paris: Seuil.

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