Texto de orientação

Por que as psicoses... ainda[1]

por Sérgio Laia [2]


O título da 26ª Jornada da Seção Minas Gerais da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP-MG), programada para os dias 1º e 2 de dezembro, sob a coordenação de Helenice de Castro e Fernanda Costa, será: Há algo de novo nas psicoses… ainda. Como o próximo Diretor Geral dessa Seção, eu o propus retomando quase que literalmente o título de outra Jornada – Há algo de novo nas psicoses –, ocorrida em setembro de 1999 e coordenada por Ram Mandil, quando Jésus Santiago foi o Diretor-Geral da EBP-MG[3]. Essa proposição se justifica tanto pela importância que esse evento do último ano do século passado teve para a vida da EBP-MG e para a inserção da psicanálise na cidade, quanto pelo lugar ­– ao mesmo tempo destacado e “desconstruído” – que a psicose tem tomado ao longo deste ainda recente século XXI. Com a definição do título do próximo Congresso da Associação Mundial de Psicanálise, previsto para 2024 – Todo mundo é louco –(MILLER, 2022), ganhou ainda mais força a decisão de trabalharmos, na próxima Jornada da EBP-MG, Há algo de novo nas psicoses… ainda.


Profusão e diluição

Muitas vezes afirmamos e escutamos que, em nossa prática clínica, nos consultórios e nas instituições, tem sido cada vez maior o número de pacientes que apresentam algum tipo de psicose. Sem dúvida, esse aumento, que parece denotar uma tendência de nossos dias, também se faz sentir à medida em que também afinamos nossa escuta com o que Miller, desde a Convenção de Antibes (1998) e na sequência do Conciliábulo de Angers (1996) e da Conversação de Arcachon (1997), pôde localizar e nomear como “psicoses ordinárias” (DE GEORGES, HENRY e MILLER, 1999, p. 7 e 230), ou seja, aquelas que não se manifestam pela irrupção extraordinária de um delírio, de um “surto”, ou mesmo pelo que a psiquiatria clássica, particularmente no início do século XX, pôde isolar a partir de, por exemplo, a escuta de vozes, a fuga de ideias, o automatismo do pensamento[4]. Em outros termos, as psicoses também aparecem cada vez mais porque as constatamos como não fazendo necessariamente apelo ao extraordinário. Elas, então, passam a se apresentar de forma muito mais discreta, ao se fazerem acompanhar (embora isso também aconteça em outras estruturas clínicas), pelo que se torna insistentemente comum e se difunde na ordem mesma do dia: uso indiscriminado de psicotrópicos e outros medicamentos relacionados à “ansiedade” ou à prática sexual; disseminação de drogas tradicionais e sintéticas; enredamentos no que se impõe como ato ou, também, justamente em seu oposto –  a procrastinação; errâncias; não assimilação da sexualidade aos órgãos e aos gêneros; flutuações que fazem a sexualidade tomar a forma tanto de sua suposta negação no “assexual” quanto de sua insistência perturbadora como “compulsão” ou  “vício”; dedicação incondiconal às atividades físicas, à educação alimentar e a outras propostas (incluindo os tratamentos do tipo psi) do que é prescrito como “saudável” e como “bem-estar”; a incontornável presença do “mundo digital” em nossas vidas.

MILLER (1997, p. 9), bem no final do século passado, ressaltava o quanto, em nosso “estado de cultura”, já não precisávamos, da “repressão social do dizer” porque “a vontade contemporânea do gozo passa pela permissão social”, torna-se “quase uma exigência de dizer”. Ele demarcava, assim, nossa distância da Era Vitoriana, pautada na norma neurótica do silenciamento, da censura e na qual tivemos também o surgimento da psicanálise e seu empenho de dar lugar à fala do que se apresenta literalmente como inter-dito. MILLER (1997, p. 10) constatava, a partir daí, nosso acesso a um mundo onde “a perversão”, como modo de exposição polimórfica do gozo, tornava-se generalizada e “cada vez mais presente, como nova norma social”. Por sua vez, neste início do século XXI, considerando o que encontramos em nossa prática clínica, mas também, mais além dela, por exemplo, em várias facetas de manifestações político-coletivas caracterizadas pela propagação de ordenamentos extremistas e contrários às diversidades, tenho me perguntado se a presença cada vez mais insistente da psicose em nosso mundo não nos levaria a localizar o que, considerando as excepcionalidades das psicoses com relação à lei e à ordem simbólicas, pode soar como uma espécie de contrassenso, mas que não deixa de ser indicativo da “loucura” que se propaga profusamente em nossos dias, ou seja: uma “norma” psicótica parece tomar a cena do mundo.

Porém essa profusão atual das psicoses tampouco é incompatível com sua diluição ou seu suposto “desaparecimento” porque – ao se proliferarem nas formas do comum, do ordinário e da ordem do dia – elas se “normalizariam” e passariam até como se nem psicoses fossem. No âmbito dos diagnósticos protocolares, é o que já verificamos com a  multiplicação desenfreada dos transtornos mentais promovida pelos sistemas de classificação do tipo Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais: os “transtornos psicóticos” passam a ser diagnosticáveis sobretudo pela presença prevalente do delírio (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2013) e se tornam menos localizáveis hoje, pois são deixadas de lado muitas das nuances a que, na psicanálise de orientação lacaniana, temos podido ter acesso a partir do que localizamos como “psicose ordinária”. Ainda nesse contexto, destaco que a formulação da 5ª e mais recente versão do DSM, mesmo envolta em uma série de críticas e questionamentos realizados pela própria comunidade médico-científica, pautou-se como um processo de “desconstrução da psicose” (TAMINGA, SIROVATKA, REGIER e OS, 2010) e, de fato, as psicoses, no DSM-5, foram limitadas a uns treze tipos listados no “Espectro da Esquizofrenia e outros transtornos psicóticos” e que não deixam de se perder meio aos mais de trezentos transtornos mentais ali classificados. Por sua vez, em projetos como o Research Domain Criteria (RDoC), proposto como uma resposta crítico-científica às graves inconsistências do DSM-5, privilegia-se “evidências” neurológico-cerebrais obtidas pelas neurociências (INSEL, CUTHBERT, GARVEY, HEINSSEN, PINE, QUINN, SANISLOW & WANG, 2010) e, assim também, tampouco neles as psicoses me parecem que terão algum lugar compatível com o que avaliamos, a partir de nossa abordagem sobre os impactos da palavra nos corpos, como sua ampla presença no mundo.

Logo, em um mundo onde insistentemente a psicose parece fazer as vezes de uma “norma’ pela qual ela ao mesmo tempo experimenta uma profusão e é diluída, verificamos o quanto a psicanálise de orientação lacaniana se apresenta como uma exceção, na medida em que não apenas diagnostica e trata as psicoses sem segregá-las e sem patologizá-las, como também se pauta por destacar o quanto cada um que é por ela afetado é único e ímpar em sua manifestação. É esse lugar excepcional, é o diferencial da psicanálise de orientação lacaniana neste mundo onde a loucura se generaliza a ponto de perder o que a distingue, que a XXVI Jornada da EBP-MG terá, a meu ver, toda condição para realçar, seja em seus Seminários Preparatórios, seja nas Plenárias e Mesas nas quais ela irá se realizar.

 

Uma hipótese

Este mundo, no qual as psicoses concomitantemente proliferam e são diluídas, é também aquele onde o Nome-do-Pai parece encontrar cada vez menos lugar para sua função de significante fundamental que pavimenta o que LACAN (1955-1956/1985, p. 321-331) nos ensinou a localizar como a Grande-Rota-do-Outro, a Rodovia Principal do Outro[5]. É também o mesmo mundo em que o chamado “falocentrismo” entra em vertiginosa queda. As identificações, então, passam a se pautar (e não apenas entre os psicóticos) pela propagação múltipla do S1-enxame, isto é, do significante-mestre tomado não mais em sua faceta unária, mas proliferado em “ordens” múltiplas e diversas porque cada um, hoje, é convocado a “seguir” sua “própria” lei, a “guiar-se” por sua própria satisfação. Tornamo-nos então, globalmente, o que LACAN (1971/2003, p. 24) localizava apenas nos japoneses que, segundo ele, para o apoio de suas identificações fundamentais, contam com a variedade do “céu constelado, e não apenas o traço unário”, ou seja, com o múltiplo e não só o Um ou, ainda, para evocar KANT (1788/1985, p. 173) – e não sem contrariá-lo –  “a lei moral em mim”, a presença do que me liga universalmente ao Outro, passa a ser cada vez mais ofuscada pela multiplicidade do “céu estrelado” que já não me parece mais se colocar tão “acima de mim”. Por fim, conforme Miller pôde formular em 2022, por ocasião de uma das discussões da Grande Conversação Virtual Internacional da Associação Mundial de Psicanálise, nosso mundo é também o mundo aquele no qual, ao contrário do que proclama o célebre e enigmático aforismo lacaniano, A Mulher passa a existir enquanto O Homem deixa de existir[6].

Considerando essas novas formas do mundo se apresentar e minha prática clínica com as psicoses, formulo a hipótese de que nós, analistas pautados pela orientação lacaniana, teríamos a oportunidade de nos servirmos do não-todo fálico – por sua função eminentemente feminina – como uma referência, um norteamento diferente daqueles promovidos pelo Nome-do-Pai, pelo Falo e pelo Outro. Afinal, o não-todo fálico se demarca pelo Heteros, pelo feminino e pelo furo (LACAN, 1972-1973/2003)[7]. Em outros termos, me pergunto se não poderíamos fazer valer o não-todo fálico como uma espécie de orientação para os pacientes cujas psicoses lhes desnorteiam a vida na medida em que são assolados pela foraclusão, ou seja, pela ausência mesma do Nome-do-Pai e do falo no simbólico.

No entanto, como tomar como referência, em circunstâncias subjetivas marcadas por uma anulação do falo, o não-todo fálico que, como sabemos, implica certa conexão ao falo? Aqui, parece-me oportuno fazer incidir, sobre minha hipótese, a concepção, no Seminário 23, da função fônica do falo (LACAN, 1975-1976/2007, p. 101-124) ou, já antes, no Seminário 19, a constatação de como a fala se levanta, ao modo de um falo, nos balões que saem da boca dos personagens das histórias em quadrinhos (LACAN, 1971-1972/2012, p. 67-69). Essa função fônica do falo, assim como esse poder fálico-falacioso da fala têm um amplo alcance na experiência analítica de orientação lacaniana e, de um modo mais específico, nos tratamentos de muitos casos de psicoses porque sempre operamos com o dizer e, de um modo específico, verificamos o quanto os pacientes afetados pelo que localizamos como psicoses são tomados por uma urgência de querer dizer que, mesmo nos casos atravessados por um forte mutismo, convocam a um compartilhamento com quem se dispõe a escutá-los e segui-los. Logo, a partir dessa urgência de querer dizer que os impacta, podemos operar com o que Lacan nos ensinou sobre a função fônica e a falácia do falo. Nessa direção, essa função e essa falência não seriam incompatíveis com a descrença que as psicoses muitas vezes fazem recair sobre o falo e outros elementos relacionados a alguma função de organização ou condensação. Dimensionar algo do falo em sua própria falácia frente à polimorfia da satisfação pulsional e na multiplicidade dos fonemas de um dizer que também pode ressoar como silenciamento me parecem nos servir de recursos para, mesmo de um modo pontual e que pode requerer nossa persistência, fazer vacilar a certeza que – não sem perturbações e perplexidades – é imposta às psicoses.

Considero também oportuno, na exploração dessa minha hipótese, retomar uma proposta feita por SOUTO (2022), durante a última Conversação dos Membros da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP), reportando-se a pacientes citadas nos relatórios das Seções São Paulo e Rio de Janeiro dessa Escola: um tratamento conduzido por um analista pode transmutar o lugar nenhum, marcado e assolado pela segregação e pelo negativo, em lugar de mais ninguém, eivado do gozo, ou seja de uma satisfação, não negativizável. Essa retomada é oportuna porque não é incomum encontrarmos psicóticos que se apresentam assolados por um não-lugar, por mais que hoje em dia o aumento dos casos de psicoses nos permita constatar o quanto se alojam em “lugares” que passam, mesmo de forma alternativa ou underground, a ter destaque em nossa civilização. O problema é que esse alojamento não os libera desse não-lugar que tanto os assola e os fazem se apega a posições de objeto a-bjeto, derivadas de suas experiências de anulações subjetivas e que, a meu ver, como um modo de se defenderem do furo incontornável da foraclusão do Nome-do-Pai, os levam a se colar ao que LACAN (1975-1976/2007, p. 24-26, 114, 113-114) nos ensinou a localizar como um “falso furo”.

Ora, o lugar de mais ninguém – destacado por SOUTO (2022) da leitura que MILLER (2007-2008/2015, p. 32) faz de uma passagem de “Observação sobre o relatório de Daniel Lagache…” (LACAN, 1958-1960/1998, p. 653-691)  – “não é pura e simplesmente uma ausência”, não se confunde com “ ‘a pureza do não ser’ ” porque se trata da “ ‘pureza do não ser localizada em um lugar’ ”, e um lugar de onde parte um dizer que vocifera, fazendo valer uma voz que “ ‘vai mais longe que o objeto a’ ”,  consonante com o gozo,  ressoando “para além do objeto e dos ideais”, “uma voz que responde a partir de um vazio de identificações”[8]. Lacan, como nos lembra SOUTO (2022), se refere a esse lugar como “um círculo queimado na mata das pulsões” e, assim, “no emaranhado das pulsões”, encontraríamos “uma espécie de clareira aberta no gozo…, um furo no real”. Logo, com a abertura dessa clareira no gozo, um furo real – e não mais apenas um falso-furo – pode ter lugar.

Sabemos que a referência ao lugar de mais ninguém vem da astúcia de Ulisses enganar o cíclope Polifemo que queria engoli-lo: o herói grego cega tal monstro de um olho só e, como havia se apresentado antes dizendo que se chamava Ninguém, escapa desse guloso monstro porque, quando este procura quem o cegou, seus parceiros respondem: foi Ninguém (HOMÈRE, VIII a.C./1955, p. 674-676). Logo, valendo-se do equívoco do nome que se deu, Ulisses se safa. Essa astúcia é aquela mesma do funcionamento ordenador do significante que pode até se valer do equívoco para fazer ressoar algo diferente do que em geral se pretenderia dizer: onde se esperava escutar um nome próprio, a designação e o corpo de alguém, aparece Ninguém. Ora, esses volteios do significante me parecem muito mais consonantes à organização fálico-masculina, diferente da orientação que também poderá se derivar, de modo bem diferente, mas não sem o corpo e o dizer, do não-todo fálico. Em muitos casos de psicose, verifico que o círculo queimado no emaranhado das pulsões se abre como uma clareira no gozo graças ao esvaziamento que o tratamento lhes promove nas nomeações que, embora lhes sejam determinantes e importantes, não deixam de lhes perturbar a vida. São também as clareiras que, mesmo de modo bruxuleante e intermitente, requerendo sempre mais uma intervenção nossa, ainda, vemos se abrir quando os psicóticos se deixam tocar por esse amor inédito chamado transferência[9].

A partir do que LACAN (1958-1959/2016, p. 490) formula sobre o corte, o discurso e a pontuação, poderemos dizer que o psicótico não pontua o que lhe vem do Outro. Os tratamentos das psicoses, pautados na orientação lacaniana, dão lugar a alguma pontuação. Certamente, não aquela do ponto de basta que, nas psicoses, não se apresenta devido à ausência do Nome-do-Pai no simbólico. Também não é propriamente a pontuação que contaria apenas com as nomeações que os próprios sujeitos assolados pelas psicoses procuram se dar, nem muito menos aquela que lhe são impostas com as injúrias experimentadas como vindas do Outro. Trata-se de uma pontuação que faz vacilar – mesmo que por um instante a ser sempre reiterado na condução de seus tratamentos – as certezas que os consomem, uma pontuação conquistada a partir de seu consentimento com o que poderá se apresentar como um verdadeiro e real furo em suas vidas, permitindo-lhe confrontar-se de modo diferente com o furo, no simbólico, relativo à foraclusão do Nome-do-Pai. Nesse contexto, tal exercício de pontuação me parece muito próximo daquele que encontramos no célebre monólogo de Molly Bloom, com que JOYCE (1922/2022, p. 671-715) conclui, mas com uma abertura, ou seja, um furo, esse outro Ulysses que é o seu, mais consoante ao não-todo feminino que ao todo da castração.

Sem dúvida, ao lermos tal monólogo proferido por uma mulher, é visível o quanto ele não conta com qualquer sinal de pontuação e, como exemplo, transcrevo dele as últimas e seguintes frases:

…a gente perdeu o barco em Algeciras o vigia de um lado pro outro tranquilo com o lampião e Ô tal terrível torrente profunda Ô e o mar e o mar carmim às vezes que nem fogo e aqueles poentes deslumbrantes e as figueiras nos jardins de Alameda sim e aquelas ruelas esquisitas todas e as casas rosas e azuis e amarelas e os roseirais os jasmins e os gerânios e cactos e Gibraltar eu menina onde fui uma Flor da Montanha sim quando eu pus a rosa no cabelo que nem as andaluzas faziam ou será que hei de usar uma vermelha sim e como ele me beijou no pé do muro mourisco e eu pensei ora tanto faz ele quanto outro e aí pedi com os olhos pra ele pedir de novo sim e aí ele me perguntou se eu sim diria sim minha flordamontanha e primeiro eu passei os braços em volta dele sim e puxei ele pra baixo par perto de mim pra ele poder sentir os meus peitos só perfume sim e o coração dele batia que nem louco e sim eu disse sim eu quero Sim. (JOYCE, 1922/2022, p.715).

Porém, Joyce pôde responder a seu amigo BUDGEN (1934/1960, p. 262-263) que esse monólogo caudaloso e de Molly Bloom está permeado de pontos cardinais formados por partes do corpo conjugadas a palavras: “‘o monólogo dela gira vagarosamente, regularmente, embora com variações, caprichosamente, mas com certeza como a imensa bolaterrestre (earthball) rodopiando. Seus quatro pontos cardinais são os seios femininos, o ânus, o útero e o sexo, expressos pelas palavras porque, fundomulher e sim”. Logo, nesse monólogo que prenuncia e se abre para esse outro fluxo ainda mais caudaloso das palavras que compõem todo o livro Finnegans Wake (JOYCE, 1939/2022), não são os sinais convencionais de pontuação que são usados, mas isso não quer dizer que o texto joyceano não dá lugar a intervalos, a essas pausas para respiro que uma pontuação visa imprimir no que se escreve e fala.

Essa referência à pontuação de Joyce, ao trabalho a que ele se dedicou de transformação da língua, bem como sua proximidade com o que podemos operar, como analistas de orientação lacaniana, nos tratamentos das psicoses, me evoca, também, a seguinte formulação de Laurent (2003/2006, p. 21), que aceitou nosso convite para dar uma videoconferência na XXVI Jornada da EBP-MG e com a qual concluo este texto que se apresenta como uma espécie de radar no rumo em que estamos com relação a esse evento:

Trata-se… de uma identificação ao procedimento joyceano de transformação da língua… O … tratamento psicanalítico das psicoses consiste em uma conversação com o sujeito, em lhe fazer prosseguir seu empreendimento de tradução sempre possível, já que o gozo falta ao oceano dos nomes próprios… “Fazer-se um nome” é alojar-se não apenas sob um nome identificável no registro do ideal, mas, mais profundamente, decidir-se por esse empreendimento de tradução da língua. Quando o sujeito pode alcançar isso, encontrar uma certa paz nessa tradução constante, terá sido obtido um tratamento psicanalítico possível desse gozo.

Mas Laurent (2003/2006, p. 21) também nos alerta que tal encontro com alguma paz, nesse esforço constante de tradução, não deve ser confundido com um “conto de fadas” do tipo “‘eles começaram seus empreendimentos de tradução comum, eles viveram felizes e tiveram muitas estabilizações delirantes’”.  Afinal, se o gozo – para qualquer estrutura clínica – é o que falta no mar dos nomes próprios porque não se adequa a qualquer nomeação, será o não todo que, diferentemente da totalização almejada nos contos de fadas, nos servirá de farol para nos orientar, com o lusco-fusco que é próprio desse tipo de sinalização, na profusão pela qual as psicoses insistem no mundo que, de modo geral, pretende dilui-las na banalidade do que é normal.

 

REFERÊNCIAS

AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION (Ed.). Diagnostic and Statistical Manual of the Mental Disorders, Fifth Edition, DSM-5. Washington/London, American Psychiatric Publishing, 20013).

BUDGEN, F. James Joyce and the making of Ulysses (1934). Bloomington & London: Indiana University Press, 1960.

CLÉRAMBAULT, G. G. El automatismo mental (1909-1934/s.d.). Madrid: DOR, S.L. y Eolia, s.d.

DE GEORGES, P., HENRY, F. et MILLER, J.- A. (éd). La psychose ordinaire. La convention d’Antibes. Paris: Agalma/Le Seuil, 1999.

HOMERE. Iliade – Odyssée. Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard, 1955.

INSEL, T., CUTHBERT, B., GARVEY, M., HEISSEN, R., PINE, D. S., QUINN, K., SANISLOW, C. and WANG, P. Research Domain Criteria (RDoC): toward a new classification framework of research on mental disorders, American Journal of Psychiatry, n. 167, v/ 7, July 2010. Disponível AQUI. Acesso em 27 dezembro de 2022.

JOYCE, J. (1922). Ulysses. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

JOYCE, J. (1939). Finnegans rivolta. São Paulo: Iluminuras, 2022.

KANT, I. Critique de la raison pratique (1788). Paris: PUF, 1985.

LACAN, J. Le séminaire. Livre III: les psychoses (1955-1956). Paris: Seuil, 1981.

LACAN, J. O seminário. Livro 3: as psicoses (1955-1956). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

LACAN, J. Observação sobre o relatório de Daniel Lagache: ‘Psicanálise e estrutura da personalidade’ (1958-1960). In:  LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 653-691.

LACAN, J. O seminário. Livro 6: o desejo e sua interpretação (1958-1959). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2016.

LACAN, J. Lituraterra (1971). In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 15-25.

LACAN, J. O seminário. Livro 19: …ou pior (1971-1972). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2012.

LACAN, J. O aturdito (1972/1973). In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 448-497.

LACAN, J. O seminário. Livro 23: o sinthoma (1975-1976). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.

LAIA, S. Ao longo e ao largo do pai, Opção Lacaniana, Revista Internacional Brasileira de Psicanálise, São Paulo, n. 47, 2006, p. 76-80.

LAURENT, É. Disrupção do gozo nas loucuras sob transferência, Opção Lacaniana, Revista Internacional Brasileira de Psicanálise, São Paulo, n. 79, julho de 2018, p. 52-63.

MILLER, J. -A. O sinthoma e o cometa, Opção Lacaniana, Revista Internacional Brasileira de Psicanálise, São Paulo, n. 19, agosto de 2006, p. 5-13.

MILLER, J.-A. Todo el mundo es loco (2007-2008). Los Cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller. Buenos Aires: Paidós, 2015.

MILLER, J. -A. “Tout le monde est fou”, La Cause freudienne, Paris, n. 112, novembre 2022, p.  48-57.

SOUTO, S. Comentário dos relatórios dos Conselhos das Seções SP e RJ. Belo Horizonte, março de 2022 (inédito)

TAMINGA, C. A., SIROVATKA, P. J., REGIER, D. A. and OS, J. Desconstructing psychosis. Refining the research agenda for DSM-V. Arlington: American Psychiatric Association, 2010.

[1] Texto a ser publicado na próxima edição da Revista Curinga da EBP-MG.

[2] Psicanalista, Analista Membro da Escola (AME) pela Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e Associação Mundial de Psicanálise; Diretor Adjunto da Seção Minas Gerais da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP-MG) / E-mail: laia.bhe@terra.com.br

[3] Um registro do que foi esta Jornada pode ser encontrado no número 14 da Curinga, bem como no número 12 dessa mesma revista e que lhe serviu como uma espécie de preparação: Curinga: há algo de novo nas psicoses, Belo Horizonte, n. 14, 2000; Curinga: psicanálise e saúde mental, Belo Horizonte, n. 13, 1999, p. 123-145.

[4 ] Como uma das referências a esse respeito, na psiquiatria clássica, ver CLÉRAMBAULT (1909-1934, p. 47-61, 95-93, 139-199, 231-240 e 245-248).

[5] Como, nas páginas aqui citadas do Seminário 3, há nuances que não me pareceram contempladas na tradução brasileira, acho importante cotejá-las com o original (LACAN, 1956-1957/1981, p. 321-331) e me permito evocar, também, um texto onde procurei esclarecê-las: LAIA, 2006, p. 76-80.

[6] Cito, de memória, essa formulação de Miller a partir do que foi proferido por ele em uma das atividades deste evento, por ocasião de um de seus comentários do que estava sendo apresentado.

[7] Ressalto que, segundo LACAN (1972-1973/2003, p. 467), o Heteros se respalda no não-todo que, por sua relação intrínseca com o feminino, aparece em “O aturdito” escrito como nãotoda. Nesse contexto, vale citar o modo como Lacan, nesse mesmo escrito, define o “heterossexual”: “chamemos heterossexual, por definição, aquele que ama as mulheres, qualquer que seja seu próprio sexo” e, ao dizer “amar”, Lacan distingue tal acepção de heterossexual daquela que é convencional – não se trata de quem é “prometido a elas por uma relação que não há”, ou seja, pela relação sexual.

[8] Nesta citação, as aspas simples (‘…’) indicam termos e passagens que Souto (2022) cita de MILLER (2007-2008/2015, p. 332).

[9] Não abordarei aqui, neste texto, o lugar decisivo da transferência nos tratamentos das psicoses, sobretudo quando ela se distingue da dimensão metafórico-substitutiva que Freud nos orientou a usar exclusivamente nos tratamentos das neuroses. Sem dúvida, esse lugar vai ser destacado nos trabalhos relativos à XXVI Jornada da EBP-MG e encontra formulações importantes, por exemplo, em LAURENT (2018).

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