“Si Lacan habla de “atravessamiento del fantasma”, por el contrario, y no de “levantamiento del fantasma”, es porque no se trata de ninguna manera de su desaparición. Se trata de entrever, en el primeríssimo comienzo, lo que hay detrás. Lo divertido es que detrás del fantasma no hay nada. El final de análisis consiste precisamente en ir a dar una vuelta por el lado de la nada”. (MILLER, 2018, 16)[1]

 

Fantasma: do atravessamento à redução

O que seria esse “nada” por trás do fantasma? É exatamente esse “nada” que o sujeito tratará de verificar e construir durante o percurso de uma análise.

Essa citação de Miller (2013), proferida em seu Curso realizado entre 1982 e 1983, ressoa em seu Ultimíssimo Lacan, bem mais recente e publicado quase 30 anos depois. Miller nos mostra como o fantasma se torna uma noção chave no ultimíssimo ensino de Lacan.

A investigação do cartel do Eixo 2, “A tela do fantasma e a esfoliação do imaginário”, revelou que o trabalho de esfoliação do imaginário diz respeito a uma redução ao fantasma, e não propriamente a seu atravessamento como algo definitivo e derradeiro. Trata-se de redução da dimensão imaginária do fantasma, não de seu desaparecimento. Por isso, podemos localizar, com Lacan, o fantasma na figura topológica do toro, essa espécie de “boia” ou “câmara de ar cheia”, onde encontramos os giros dos quais o neurótico não sai. O toro possui a propriedade de, ao ser cortado, não se dissolver, mas revirar-se.

Por ser um objeto que se funda na existência do furo, o toro é flexível, podendo ser moldado através de cortes, giros e reatamentos na experiência de uma análise. Ele também está sujeito a uma aspiração, uma vez que se infla e desinfla, mudando sua forma, seu visual. O fantasma, se tomado como aspiração no sentido do que permite a passagem do ar, não é mais considerado como algo que se atravessa no sentido de uma dissolução ou desaparecimento, mas como algo que é rearranjado, distendido e mesmo reduzido no decurso da experiência analítica, através de cortes e reviramentos (COLOMBEL-PLOUZENNEC, 2024).

Kátia Mariás (EBP/AMP)

 

Referências

COLOMBEL-PLOUZENNEC, Anne. Le fantasme dans le tout dernier enseignement de Lacan. Ironik!, n. 60, set. 2024. Disponível em https://www.lacan-universite.fr/wp-content/uploads/2024/09/Ironik-60-Colombel-Plouzennec-DEF-DEF-1.pdf. Acesso em: 22 set. 2024.

MILLER, J.-A. El ultimísimo Lacan. Los cursos psicoanaliticos de Jacques-Alain Miller. Buenos Aires: Paidós, 2013.

MILLER, J.-A. Del síntoma al fantasma. Y retorno. Texto estabelecido por Silvia Elena Tendlarz. Buenos Aires: Paidós, 2018.

 

[1]  Tradução da citação por Kátia Mariás. “Se Lacan fala de “atravessamento do fantasma”, e não de “levantamento do fantasma”, é porque não se trata do desaparecimento do fantasma. Trata-se de entrever, inicialmente, o que há por trás. O divertido é que, por trás do fantasma, não há nada. O final de análise consiste, precisamente, em dar uma volta pelo lado do nada. O que favorece essa volta pelo nada é o desejo do analista, ou melhor, o desejo do analista como função (MILLER, 2018, p. 16).”


 “É essencial apreender a natureza da realidade do espaço como espaço tridimensional, para definir a forma assumida no estágio escópico pela presença do desejo, a saber, como fantasma. Trata-se de que a função da moldura, da janela, entenda-se, que tentei definir na estrutura do fantasma não é uma metáfora. Se a moldura existe, é porque o espaço é real.” (Lição de 12 de junho de 1963 – A torneira de Piaget, p. 309, tradução modificada). LACAN, J. O Seminário, livro 10: A angústia. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. (Trabalho original proferido em 1962-63).

A tela na janela, e a fresta

O fantasma na neurose se faz como “uma tela sobre a qual o sujeito é instituído” (Lacan, 1956-1957/1995, p. 120), já que o real, que é diferente da realidade humana, “nunca é mais do que vislumbrado – vislumbrado quando a máscara, que é a do fantasma, vacila” (Lacan, 1966-1697/2024, p.19). Ao mesmo tempo, o fantasma constitui, “para cada um, sua janela para o real” (Lacan, 1967/2003, p.259). No Curso de Orientação Lacaniana de 2011, Miller desenvolve essas duas dimensões do fantasma: a de “écran au réel”, “tela no real”, a escondê-lo; e a de “fenêtre sur le réel”,janela sobre o real”, que permite um acesso enquadrado a ele. A partir dessas elaborações, Naveau (2011) indica que o fantasma é “uma tela que fecha ao sujeito o acesso ao real e, inversamente, uma janela que abre, para o sujeito, um ponto de vista sobre o real em questão” (p. 156).

Pensada como tela (écran), estaria a dimensão de “evitamento do real” fazendo-lhe barreira. Como janela (fenêtre), seria uma abertura que denota em si mesma a conexão entre o sujeito e o real, mesmo que através dos limites desse enquadramento. Seria uma “função do real”, função subjetivada e singularizada do real, ou seja, o real para cada um (Miller, 2012). De acordo com Miller (2012), dizer que o real não tem sentido equivale a dizer que ele não corresponde a nenhum querer dizer. A doação de sentido que é dada ao real concerne a uma elucubração e, nesse sentido, o fantasma teria a função de uma elucubração sobre o real.

Em seu Seminário sobre A angústia, Lacan afirma que o fantasma funciona tal como um quadro que é colocado em um caixilho de uma janela. Para ele (1962-1963/2005), “seja qual for o encanto do que está pintado na tela, trata-se de não ver o que se vê pela janela. (…) o fantasma é enquadrado” (p. 85, tradução modificada).

A referência a essa tela na janela é o quadro A condição humana (1934), de René Magritte, no qual uma tela se interpõe sobre parte da janela, driblando o olhar quanto aos seus contornos. A tela revela a condição de representação a qual estamos todos submetidos, ao mesmo tempo em que demonstra a insuficiência dessa representação, já que a tela não obstrui toda a janela. Nesse quadro de Magritte, pode-se visualizar tanto a dimensão da tela quanto a da janela, porque fica nítido o modo como essas dimensões se conjugam na fresta – ou seja, nesse intervalo ou, melhor dizendo, nesse corte – que o pintor abre entre a tela e a janela.

Essas duas dimensões presentes na tela de Magritte revelam como o fantasma tem uma função decisiva na vida do sujeito neurótico, posicionando-o no mundo e guiando-lhe as ações através da maneira pela qual o enxerga. Nesse sentido, o fantasma, ou que Freud já havia isolado como fantasia fundamental, transforma-se em um elemento estrutural que subsiste como um enunciado à parte de todo o conteúdo da neurose (Miller, 2013a).

O fantasma, nesse sentido, emoldura a realidade, enquadrando-a e determinando a maneira de satisfação que ele estabelece com os objetos de uma maneira estática (Lacan, 1963-1964/1998, p. 786), ou, como propõe Miller (1996): “Quando o objeto a encontra seu lugar no fantasma, o fantasma toma para o sujeito o lugar do real. Não quer dizer com isso que se trata do real”. Não é demais lembrar que real e realidade não se superpõem. A realidade é uma montagem, como esclarece Lacan no seminário A Lógica do Fantasma.

Por servir como um tamponamento do real, fazendo-o enquadrar a realidade e tentando eliminar a ausência de sentido do real, o fantasma faz as vezes do real para o sujeito, escravizando-o a um modo de funcionamento estático ao lidar com isso que não cessa de não se escrever. O corte realizado numa análise pode permitir tocar essa fresta e fazer vacilar essa escravidão que denota que a condição humana passa pelo modo de gozo em que cada um se vê fisgado. Por essa fresta, por esse corte, outra escolha poderá ter lugar.

Virgínia Carvalho (EBP/AMP)

 

Referências Bibliográficas

Lacan, J. (2003). Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da escola. In Outros Escritos, p. 248-264. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1966).

Lacan, J. (1995). O Seminário, livro 4: a relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1956-1957)

Lacan, J. (2005). O Seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1962-1963).

Lacan, J. (1998). O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1964).

MILLER, J.-A. (2010-2011). Curso de orientação lacaniana III, 13: “L´être et l`Un”. Inédito.

Naveau, P. (2011).Fantasia. In: Kruger, F.; Gorostiza, L. Scilicet. A ordem simbólica no século XXI não é mais o que era. Belo Horizonte: Scriptum.


O analisante faz também a experiência do real como inibição, a partir de um não poder que parece absoluto, esse que Freud imputa à debilidade do eu e que na experiência pode apresentar-se com o passar do tempo como um muro, uma surdez do inconsciente, que evidencia a insistência de algo mais poderoso, de outra ordem que a repressão e refratário à eficácia da interpretação.[1] (J.-A. Miller, 13 de janeiro de 1999)

Da inibição inaugural da psicanálise

 A convicção de Lucy R. ao dizer não sei às investidas de Freud sobre a origem do seu sintoma desperta uma suspeita: ela sabe, mas não entrega. Esse não sei confessa um não poder dizer, não poder saber, um obstáculo na direção do tratamento. Freud deseja perfurar o muro desse não absoluto e ir além do que ali se insinua impossível de dizer. Ele pretende perturbar o levante dessa força inibitória ao introduzir na cena outra força – técnica da pressão: toca a cabeça da analisante e pede que lhe diga, ao ceder a pressão de suas mãos, o que lhe vier à mente como súbita ocorrência. Lá onde se eleva o muro da resistência, a transferência surge como um fator contíguo: de repente, eu realizo o fato de sua presença[2].

J-A. Miller esclarece que, oito anos depois, Freud orienta a nunca tocar no paciente. A essa altura, ele já havia verificado que, de fato, o que acontece numa análise não está nas suas mãos. Mas, a partir desse experimento inicial, Miller nota que Freud colocou seu corpo e sua presença para dar partida à cena inaugural de onde começou o teatro que seguimos[3].

Para Freud, há nesse não uma decisão do sujeito em rechaçar e se defender da insistência de um elemento inconciliável e incompatível ao sentido que se impõe ao eu. Tal elemento tampouco pode ser recalcado. Sua raiz advém de outra ordem que o recalcamento. Sua natureza indomável e desobediente parte da desordem pulsional e força Lacan, no percurso de seu ensino, a ir além do depósito recalcado e situar a sua evidência inapreensível como um flash do inconsciente real. Por isso, é um fator clínico fundamental na neurose a inibição que se impõe nesse não, trata-se de um índice do real que o analisante experimenta.

Ao não querer saber de nada disso que vive à parte, mas também em si mesmo, a debilidade, como uma escolha da estrutura, se arma em defesa ao real. O não saber, o não querer saber e, no absoluto, o não poder saber estão em relação ao que, opaco ao sentido, se separa, se isola e aspira sossegar na ilha do sintoma – lá onde o analista intruso entra para perturbar. Afinal, o obstáculo à regra fundamental da associação livre, do falar livremente sobre tudo, está mais além do princípio do prazer, sua força advém do real do gozo e não há nenhuma esperança de alcançar tal real pela representação[4]. Sua matéria, não sendo dócil ao simbólico, faz obstáculo à eficácia da interpretação e, de Freud a Lacan, se mostra refratária à decifração. Sobre isso, só se pode mentir.

Se a experiência do real é uma evidência na experiência analítica, o real, ao mesmo tempo, não se deixa usar como instrumento. Ele atravessa os limites do campo da linguagem: é outra dimensão onde o sentido nunca poderá se agarrar e que se instala alhures desde uma fenda que não se pode atravessar só se pode imaginar. Portanto, uma análise pode do simbólico e do imaginário se servir, mas, com o real, terá que se arranjar.

Para tanto, é preciso ir além da decifração, ultrapassar o muro débil do sentido, do blá-blá-blá, através da interpretação como perturbação[5] – uma interpretação que visa extrair um efeito de sentido real ao revirar o tecido do corpo falante, para ler em sua própria textura o mesmo que, como se imagina, se escreve como um novo texto, a cada vez. Para estar à altura do que seu ensino nos força alcançar, Lacan concebe a noção de parlêtre, “falasser”, pela qual o inconsciente se realiza com o que o corpo tem de real.

Essa citação de Miller é preciosa por colocar em relevo o real que inaugura o encontro de Freud com a psicanálise e que segue como o que não muda na análise de cada um.  Aguardamos que os casos encaminhados à 27ª Jornada da EBP-Minas possam nos trazer como isso ainda se mostra e se arranja na experiência analítica hoje.

Fernanda Otoni Brisset

 

[1] MILLER, J.-A. Lo real en lo simbólico. In: MILLER, 2014, op. cit., p. 103. (Tradução livre)

[2] LACAN, J. O seminário, livro 1: Os escritos técnicos de Freud. (1953-1954) Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de Betty Milan. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1986. p. 52.

[3] MILLER, J.-A. La resistencia inaugural. In: MILLER, J.-A. La experiencia de lo real en la cura psicoanalítica. Buenos Aires: Paidós, 2014. p. 58. (Tradução livre)

[4] LACAN, J. La troisième. Paris: Navarin Éditeur, 2021. p. 17. (Tradução livre)

[5] MILLER, J.-A. La patología de la conducta. In: MILLER, 2014, op. cit., p. 135.


“Mas os neuróticos são, acima de tudo, inibidos em suas ações: neles, o pensamento constitui um substituto completo do ato. Os homens primitivos, por outro lado, são desinibidos: o pensamento transforma-se diretamente em ação.” FREUD, S. Totem e Tabu. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. XIII, 1974, p. 190. (Trabalho original publicado em 1913).

Procurar para não encontrar: manobras da neurose

Em Totem e Tabu e mais especificamente no trecho citado acima, Freud compara o pensamento do homem dito então primitivo e do neurótico. Segundo ele, através do ato mágico, o homem primitivo tinha uma crença imensa no poder de seus desejos. Pode-se dizer, entretanto, que o mesmo acontece em determinada fase da infância na qual as crianças também fazem isso. A diferença é que se na criança pequena é necessária a alucinação para satisfazer o desejo, o homem primitivo adulto tem à mão outro método: o impulso motor. Posteriormente, o homem dito primitivo teria descoberto que apenas conjurar espíritos através do ato mágico não dava resultado, a menos que a conjuração fosse acompanhada de fé, e que o poder mágico da prece falha se não houver, por trás dele, piedade em ação. (..)

Freud afirma que a construção desse sistema de magia sobre associações de contiguidade mostra a importância atribuída aos desejos e à vontade, mas que mais tarde foi estendida desses fatores para todos os atos psíquicos sujeitos à vontade. A consequência será a supervalorização de todos os processos mentais, pois as coisas se tornam menos importantes do que as ideias das coisas, mostrando, assim, a importância da prevalência do pensamento sobre as coisas. Há então, uma “onipotência de pensamentos”.

A expressão “onipotência de pensamentos” foi retirada por Freud de um analisante que sofria de neurose obsessiva. Segundo esse analisante, ela teria a ver com todos os estranhos e misteriosos acontecimentos que o tomavam em seus próprios pensamentos. Por exemplo, se pensasse em alguém, tinha certeza de encontrar essa pessoa logo em seguida, como se fosse por mágica. Segundo Freud, apesar desse fenômeno ser mais frequente na neurose obsessiva, acontece em todas elas, pois o determinante na formação dos sintomas é o pensamento.

A semelhança entre o homem primitivo e o neurótico aparece quando consideramos que o primeiro coincidia a realidade concreta com a psíquica: ele punha em prática sua vontade. Já o neurótico se esforça para que o pensamento constitua um substituto completo do ato. Em uma vertente lacaniana, podemos dizer que o neurótico emaranhado em seu gozo dá um jeito de sumir quando está a ponto de obter o que quer. Ele se perde em sua paixão da procura, ou melhor, ele procura para não encontrar. Assim, o neurótico é aquele que, ao insistir em nada encontrar, fica inibido quanto ao ato.

Luciana Silviano Brandão