Seminário preparatório24.10.2024CONCLUSÃO

ÚLTIMO SEMINÁRIO PREPARATÓRIO: Transposição ou Unterdrückung (supressão) da inibição?

por Graciela Bessa (EBP/AMP)

Totem e tabu não é mais um mito que nos permite ler o que acontece nos dias de hoje nas relações entre o falasser e o gozo. Essa relação cada vez mais escapa de uma submissão à lei, que é consequência do pacto firmado entre os filhos após o assassinato do Pai, e que estabelece a permanência do lugar paterno como vazio. Em Totem e tabu verificamos que num só tempo há uma renúncia ao gozo, “todos castrados”, e um consentimento de que o desejo sexual seja regulado pela lei. Sob essa lógica, a lei opera pela via da interdição, mas também franqueia o acesso ao gozo, aquele que ela estabelece como “normal”.

Como nos mostra o relatório referente ao Eixo 3 da 27a Jornada da EBP-MG, redigido por Simone Souto, a norma, com o declínio da função paterna, ao se apresentar ao modo da lei simbólica, altera a relação do falasser com o gozo: se, antes, imperava o universal “todos castrados”, com a norma se tem o imperativo “todos têm direito ao gozo”. a norma toma a voz do imperativo do supereu – Goza!. “Todos devem gozar” e, como o gozo que se obtém nunca é o gozo esperado, o falasser fica preso a essa repetição de gozo que não cessa de se escrever.

 

  1. O gozo é o limite

Em “O aturdito”,[1] Lacan observa que o supereu empurra o sujeito a um gozo para além do falo, fazendo-o girar em torno da aspiração por um gozo absoluto, imperativo. Esse imperativo sempre fracassa, pois, para o falasser, o gozo é aparelhado na linguagem e, o que subjaz sob esse imperativo é o impossível da relação sexual. Por essa razão, o supereu é correlato da castração. A castração se efetiva não mais pela via da lei paterna, mas pela hiância aberta entre o gozo que se obtém e o gozo que se espera. O gozo que se obtém está submetido a um limite, porque o furo da não relação sexual está estabelecido para o neurótico, embora ele nada queira saber sobre isso.

 

Sabemos da importância que Freud concede ao pai na relação do sujeito com o gozo. Em O avesso da psicanálise, Lacan ressalta que Freud, em um determinado momento, elege o complexo de Édipo em detrimento da escuta de suas analisantes histéricas, que podiam levá-lo bem mais longe, para além do complexo de Édipo, como Miller nomeia o conjunto de capítulos que apresenta essa observação lacaniana.[2] O curioso é que, em 1905,[3] encontramos uma passagem em Freud que de algum modo aproxima essa discussão sobre a castração não estar vinculada ao pai, mas a um processo interno. Ao discutir as inibições sexuais, observa que, no período de latência se constroem as forças psíquicas que vão funcionar como barreiras para restringir o curso da pulsão sexual no caminho de sua satisfação. O que chama a atenção é que Freud não atribui apenas à educação a responsabilidade da construção dessas barreiras, pois isso “pode ocasionalmente ocorrer sem qualquer auxílio da educação”.[4] Para ele, a construção dessas barreiras é organicamente determinada e fixada pela hereditariedade. Embora não saibamos a que exatamente ele está se referindo com as palavras “organicamente” e “hereditariedade”, podemos interpretar essa passagem como a indicação de que o impedimento de uma pulsão se satisfazer livremente não está condicionado nem a um agente externo, nem a uma ameaça externa. Ou seja, há algo no próprio funcionamento psíquico que impulsiona a construção de barreiras e detém o fluxo pulsional em direção à satisfação. Logo, há uma perda da satisfação pulsional que não se vincula à clássica e hoje tão questionada interdição paterna.

Atualmente, como também nos mostrou Simone Souto no relatório já citado, sob a norma inclusiva do gozo, os neuróticos estão cada vez mais enredados em seus loopings de gozo e culpados por não gozarem como deveriam, esperando que, a cada volta, possam alcançar o gozo que conviria à relação sexual, caso ela existisse. A experiência analítica que se orientava pela primazia do simbólico já não é suficiente para lidar com esses sujeitos enredados na prevalência do gozo, pois o simbólico fracassa no acesso ao real. O real não fala, e, portanto, não é possível simbolizá-lo; trata-se, então, de acedê-lo pela imagem – como nos diz Miller: um novo visual para imaginar o real. É justamente o que Lacan propõe em seu ultimíssimo ensino: o imaginário como a via pela qual se pode vislumbrar o real.

Quando é o próprio gozo que engendra a castração, estabelecendo um limite, mesmo que o sujeito se recuse em consentir com o furo da não relação sexual e com a inexistência do gozo absoluto, como podemos, então, reconhecer o funcionamento neurótico, se não é mais o recalque que está no cerne da defesa frente à exigência pulsional?

Encontramos em cada relatório apresentado nos Seminários Preparatórios elementos para elaborarmos uma resposta para essa questão, além de um trabalho clínico exaustivo sobre essa temática. Não será meu objetivo retomar o caminho já percorrido, mas me servir dele para relançar uma ou, talvez, algumas questões que possam continuar nos inquietando até 27ª Jornada da EBP-MG.

No Seminário O sinthoma,[5] Lacan nos apresenta um outro modo de abordar a subjetividade do falasser. Não há mais a primazia entre os registros Simbólico, Imaginário e Real e sim uma relação de equivalência. Importa saber a relação que cada um tem com o outro e como eles se enodam. Pensar a clínica a partir do enodamento entre R, S e I, as falhas que acontecem nessa amarração e as reparações possíveis para mantê-los juntos a partir do acréscimo da quarta rodinha de barbante, o sinthoma, independente da estrutura clínica em jogo, é sair da lógica do gozo como resto de uma operação simbólica para tomá-lo como acontecimento de corpo, e tomar a constituição do sinthoma como iteração do gozo advindo do impacto do significante, S1 sozinho, no corpo. No sinthoma, há iteração do S1 sozinho, ou seja, ele não é definido como o retorno do recalcado.

Maria José Gontijo apresenta a importância do tema da 27ª Jornada, …e as neuroses continuam existindo, “em um mundo cada vez mais tomado pelas psicoses”,[6] lançando o desafio de cingirmos os referentes teórico-clínicos que nos orientem na diferenciação entre neurose e psicose e qual seria o estatuto da interpretação analítica.

 

  1. O fantasma, o objeto a e a inibição

No ultimíssimo ensino de Lacan, localizado por Miller nos Seminários 24 e 25, encontramos uma nova definição da neurose, sem recorrer ao Nome-do-Pai ou ao falo. Na lição “O real não fala”,[7] Miller retoma o esquema, apresentado no capítulo VIII do Seminário 20, que define os lugares de R, S e I a partir de três vetores orientados no sentido horário. Nesse esquema, também trabalhado no relatório do Eixo 1 redigido por Ana Lydia Santiago, o imaginário se dirige ao simbólico, I→S, e nessa imaginarização do simbólico se situa o fantasma; o simbólico se dirige ao real, S→R, e nesse caminho Lacan situa o objeto a. No referido capítulo, Lacan faz o movimento de estabelecer uma disjunção entre o real e o simbólico. Ao acrescentar o semblante no caminho do simbólico para o real, ele indica a inadequação do objeto a na abordagem do real, porque diz respeito ao efeito de sentido: “o simbólico, ao se dirigir para o real, nos demonstra a verdadeira natureza do objeto a”,[8] sua natureza de semblante de ser. E, por fim, o real se dirige para o imaginário, R→I, é a imaginarização do real. No Seminário 25, Lacan situa a inibição nesse vetor.

Frente à hiância que se apresenta, na neurose, entre imaginário e real, há uma dificuldade em se utilizar uma imagem para se ter uma ideia do real. Essa dificuldade é da ordem de uma inibição. Lacan, portanto, situa a inibição como uma defesa que impede o neurótico de imaginar o real.

 

  1. A inibição de Freud a Lacan

Em Freud, a inibição se refere a uma detenção do movimento, é o impedimento do exercício de uma função para evitar o desencadeamento da angústia. Ela consiste numa solução mais eficiente para a angústia, podendo, em alguns casos, evitar um conflito com o Isso. Freud apresenta, como exemplos, a inibição em tocar piano, ou escrever, ou andar, e “isso ocorre porque os órgãos físicos postos em ação – os dedos ou as pernas – se tornam erotizados de forma muito acentuada”.[9] Também existem inibições que servem à autopunição, em que o eu inibe a realização de atividades no campo profissional que trariam lucro e sucesso. Essas inibições evitam um conflito com o supereu.

Há estados de depressão que podem decorrer de uma inibição generalizada, quando o eu tem que lidar com uma tarefa psíquica particularmente difícil. Como exemplo, um neurótico obsessivo que era dominado por uma fadiga paralisante, que durava um ou mais dias, sempre que acontecia algo que evidentemente deveria tê-lo enfurecido.

Lacan se serve das elaborações freudianas em “Inibição, Sintoma e Angústia” em dois momentos de seu ensino. Um deles se encontra no Seminário A angústia,[10] em que ele dispõe essa tríade freudiana em três planos, orientados pelos vetores da dificuldade e do movimento. A inibição ocupa o lugar em que há zero dificuldade e zero movimento. Diametralmente oposto a ela se encontra a angústia, sinalizando que seu lugar está determinado pelo alto grau de dificuldade e de movimento.

Outro momento é no Seminário RSI, logo nas primeiras lições, em que Lacan articula inibição, sintoma e angústia com os registros real, simbólico e imaginário, respectivamente:

[…] no que diz respeito à Angústia, Inibição, Sintoma, que distribuí em três planos

Inibição

Sintoma

Angústia

para poder, justamente, demonstrar, o que é sensível, desde aquela época, a saber, que esses três termos, Inibição, Sintoma e Angústia são heterogêneos entre si como os meus termos Real, Simbólico e Imaginário. (tradução nossa)[11]

No Seminário RSI, Lacan procura demonstrar que o nó borromeano, ou seja, a amarração entre os três registros, é o que constitui a subjetividade, a estrutura do ser falante, sem se valer do mito do Édipo, embora, em algumas passagens, tente articular o mito edipiano com os registros. Seu interesse pelo modo como Freud aborda a constituição do funcionamento psíquico em torno da inibição, do sintoma e da angústia se dá por reconhecer que, no texto em que esses termos aparecem no título, Freud pensa a estrutura neurótica sem colocar o mito de Édipo como central. Para Freud, a angústia é o elemento central das neuroses, e a inibição, por sua capacidade de antecipar-se ao seu surgimento, detendo o movimento, revela-se como a defesa mais eficiente contra ela. O sintoma, por sua vez, é uma resposta ao desencadeamento da angústia.

O primeiro ponto a ser destacado quanto à inibição é o fato de que ela própria resolve o que não pode ser satisfeito no corpo, ou seja, a satisfação é posta fora de ação pela detenção do movimento. Já o sintoma, enquanto retorno do recalcado, é definido como “um sinal e um substituto de uma satisfação pulsional que permaneceu em estado jacente”,[12] e demonstra que a defesa do recalque falha. A presença do sintoma no eu é sempre a de um corpo estranho, de algo que não lhe pertence.

Quando Lacan, em seu ultimíssimo ensino, define a neurose a partir da inibição – inibição em produzir um visual sobre o real, porque entre o real e o imaginário não existe continuidade, e sim hiância –, ele segue a orientação freudiana de que na inibição há uma eficácia, pois há uma detenção do movimento. Isso vai na mesma direção da seguinte afirmação de Miller: “é certo que o que ele chama angústia é o que conota a passagem da realidade ao real, a travessia da realidade no sentido do real e que, com isso, é correlativa de uma falha do significante”.[13] O que estanca esse movimento, o que o detém, com a finalidade em evitar a angústia, é a inibição. A inibição, portanto, é uma defesa frente ao real.

 

  1. Transposição ou Unterdrückung (supressão) da inibição?

Sabemos que, na neurose, a hiância entre I e R não se desfaz. E quanto à inibição? É possível transpô-la? Transpor a inibição comporta consentir com o “não há relação sexual”? Ou o que acontece não seria da ordem de uma transposição, e sim de uma supressão, da Unterdrückung, tal como sugere Lacan em relação ao tropeço de memória de Freud, o esquecimento da palavra Signorelli? No caso, a “palavra Signor, Herr, passa por baixo – o senhor absoluto, a morte, para dizer tudo, desaparece ali”.[14] Isso quer dizer que o Signor é mantido no circuito sem poder entrar nele por algum tempo. Podemos pensar que a inibição pode ser suprimida, mas ela se mantém, sem interferir no processo em que se produz um visual para aceder o real? A inibição fica fora do circuito apenas por um tempo?

Durante a discussão do primeiro relatório, Jésus Santiago perguntou se o sonho poderia ser um visual proposto pelo imaginário para se ter uma ideia do real. No relatório do Eixo 3, Simone Souto propõe o sonho como uma via para apresentar esse visual, porque apresenta uma imagem “para enfrentar o silêncio do real”.[15] Traz como exemplo o sonho de Freud da Injeção de Irma.

Ao analisar seu sonho, Freud aponta para o momento em que surge uma imagem aterradora e angustiante, que é a imagem do fundo da garganta de Irma. Lacan reconhece nessa imagem a revelação do real. Freud não desperta e seu sonho vai mais adiante, conduzindo-o a uma outra imagem, que é a fórmula da trimetilamina. Nesse sonho, surge um visual para se aceder ao real, de dois modos diferentes. Num primeiro momento, só a imagem aterradora; como Freud vai além e não acorda, para continuar sonhando, chega a uma segunda imagem, a fórmula da trimetilamina, que não conduz ao sentido, mas a uma sequência de letras, que Lacan aborda como sendo o real cifrado em letras. O percurso desse sonho poderia ser reduzido do seguinte modo: da imagem aterradora – um visual do real – que causa angústia, à imagem de um real cifrado em letras. É possível dizer que a fórmula da trimetilamina, esse segundo visual, foi a solução encontrada por Freud ao horror ao feminino? Embora em suas elaborações o enigma do feminino persista com a questão O que quer uma mulher?, ele não alcança teoricamente o triunfo alcançado em seu sonho: o feminino fora do sentido.

Se, nesse sonho, uma imagem se produz capaz de revelar o real que não fala, o que aconteceu com a inibição? Ela foi suprimida por um tempo, permitindo que esse visual que revela o real passasse por baixo?

Eu lanço a hipótese de que, ao menos nos sonhos, quando eles produzem um visual que acessa o real, a Unterdrückung, a supressão da inibição, é sempre contingente. A inibição em imaginar o real, nesses casos, não é abolida. A inibição sofre a ação da Unterdrückung. Esse visual que surge no sonho não significa necessariamente que o sonhador vislumbre o furo da não relação sexual e extraia disso todas as consequências. Produzir, conforme indica o relatório do Eixo 3 escrito por Simone Souto, uma outra “fixão do real” só é possível através da experiência analítica, em que o analista interpreta com o corte de sentido, fazendo surgir uma significação vazia.

Trago um sonho extraído do testemunho de passe de Jésus Santiago, no qual é possível extrair um visual do real a partir do equívoco homofônico entre duas línguas diferentes.  O sonho é o seguinte:

Estou numa comemoração na Escola, aproximo-me de um de meus colegas que participava do grupo de discussão sobre o tema de um relatório e digo-lhe que encontrei a fórmula para a solução do problema do masculino. Convido-o para ir até a biblioteca e, no instante de mostrar-lhe minha descoberta, vejo folhas em branco, onde está escrito apenas o título: “fórmula Q”. Fico desapontado: onde teria escrito a solução, deparo-me com o vazio.[16]

Ao relatar esse sonho na língua francesa, o que fica é a fonação “formule cul”. Essa palavra, cuja significação é vazia, é uma imagem que captura o gozo traumático do sujeito. Embora não seja um sonho de final de análise, é a demonstração de que o final já estava em perspectiva.

Até o momento, arrisco dizer que, através dos sonhos, é possível suprimir a inibição de se imaginar o real e, com isso, produzir uma imagem que dê certa ideia do real. Nos sonhos, isso acontece de modo contingente, o real cessa de não se escrever, ao menos naquele momento. Outra via para que se possa aceder ao real pelo imaginário é a experiência analítica orientada pela interpretação como corte, que esvazia o sentido, cuja visada é o gozo do sinthoma.

O que acontece com a inibição que se aloja na hiância entre imaginário e real, dificultando ao neurótico imaginar o real numa experiência analítica? Haveria outra possibilidade, para o neurótico, de aceder ao real pela via de um novo visual, apesar da inibição? A esfoliação do imaginário, que acarreta a redução do fantasma, é capaz de vencer a inibição e permitir ao neurótico aceder ao real pela via da imagem? Foram essas questões que me surgiram ao ler o relatório do Eixo 2, escrito por Lilany Pacheco. Esse relatório formula a seguinte hipótese, partindo do lugar de primazia do corpo no ultimíssimo Lacan:

esfoliar o imaginário implica, em última instância, operar com os cortes no que retornam como algo tangenciável como gozo do corpo, de tal maneira que o falasser encontre um modo de se virar com o impasse do corpo como Outro. Com a lógica de borracha, dócil aos cortes, a relação com o fantasma se torna um vetor para imaginar o real, e não mais a tela de proteção.[17]

Lacan, ao formular que o fantasma não é apenas tela para o real, mas também funciona como janela para o real, propõe duas funções para ele. Uma delas seria a de proteção, de anteparo, mantendo o falasser a uma boa distância do real – aqui a inibição em imaginar o real se apresenta. A outra, como janela para o real, seria de abertura ao real. O fantasma, nessa função de janela para o real, seria ele próprio um visual do real?

Por um bom tempo, as análises eram conduzidas para a construção do fantasma reduzindo-o a uma frase axiomática, tal como “Bate-se numa criança”. A travessia do fantasma, ou seja, sua redução a uma frase axiomática, possibilitar-nos-ia ter acesso ao real. Lacan, no entanto, observou que sempre há restos que não foram modificados pela travessia do fantasma. São esses restos que iteram no sinthoma.

Sérgio de Mattos, em seu texto “O que se passa no que não anda na neurose”, apresentado recentemente na Conferência dos Analistas da Escola, nos dá uma orientação do que acontece quando, ao esfoliar o imaginário, reduz-se o fantasma a uma frase axiomática, permitindo ao sujeito, com isso, cingir o objeto a que está em jogo. O longo trajeto de análise e os cortes do analista permitiram-lhe uma transformação em sua relação com o fantasma fundamental como programa de gozo. Ou seja, já não estava tão submetido ao enquadre fantasmático. Foi um período da análise em que houve “o enfraquecimento da tela defensiva do fantasma e ao mesmo tempo totalmente tragado pelo gozo do apagamento”, gozo de seu sinthoma. Nesse momento, sonha estar caminhando em um deserto, quando tropeça em um toco. O trabalho analítico lhe possibilita encontrar uma solução pragmática para essa imagem do sonho em que o toco marca uma orientação: “tocar adiante”. Por outro lado, o (t)oco lhe remete ao nada que se conecta à imagem do deserto. Sem o enquadre fantasmático, ao cingir o nada através do sonho pôde desvelar a “situação de devastação que vivia como um radical apagamento”. Com isso, é levado à lembrança infantil de um acontecimento de corpo, permitindo-lhe discernir o objeto a em jogo em seu fantasma: o objeto nada. A análise continua, ultrapassa o deserto, e “transforma o nada em um lugar que situa um vazio”. Isso se verifica em um sonho em que há, entre outras coisas, “uma moldura que envolve um vazio de azul maravilhoso” e uma outra moldura que contém no seu interior uma mandíbula de osso, representando a morte; mas a vida também se faz presente alí através da imagem da trepadeira florida, que se enrosca na moldura da morte. Esse sonho produz o visual em que o nada se transforma em vazio vivificante. Com esse testemunho, observamos a passagem do fantasma como tela para o real, e, portanto, em sua função de defesa, de anteparo para o real, para o fantasma enquanto janela para o real. Essa passagem só é possível quando há esfoliação do imaginário.

É possível dizer que a redução do fantasma em uma frase axiomática – uma frase, portanto, sem sentido – é um visual, uma vez que ele se apresenta como janela para o real?  Essas duas molduras que aparecem no sonho – uma que envolve um vazio de azul maravilhoso e a outra em que a mandíbula de osso, que representa a morte, se entrelaça à vida pela presença da trepadeira florida – seriam a exemplificação de que houve uma Unterdrückung da inibição e, com isso, a produção de um visual para se ter uma ideia do real que não fala?

Após esse percurso, lanço minha hipótese: da mesma forma que a hiância entre o imaginário e o real, na neurose, não se desfaz, o mesmo aconteceria com a inibição. Ou seja, não há transposição, tampouco desaparecimento da inibição em imaginar o real. Acredito que há Unterdrückung da inibição, e ao ser suprimida, uma imagem passa por baixo revelando o real através dela para o falasser.

Notas do autor:

 

[1] LACAN, J. O aturdito. In: Outros Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 448-500. (Trabalho original proferido em 1972).

[2] LACAN, J. O mestre castrado. In: O Seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Tradução de Ary Roitman. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992. (Trabalho original proferido em 1969-70).

[3] FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. VII, 1969. (Trabalho original publicado em 1905).

[4] Idem, ibidem, p. 181.

[5] LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; tradução de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Trabalho original proferido em 1975-76).

[6] GONTIJO, M. J. Argumento. In: 27ª Jornada da EBP-MG: Argumento, eixos e citações. 2024. Disponível em: https://www.jornadaebpmg.com.br/2024/argumento/. Acesso em: 01 out. 2024.

[7] MILLER, J.-A. O real não fala. In: El ultimísimo Lacan. Los cursos psicoanaliticos de Jacques-Alain Miller. Tradução de Stéphane Verley. Buenos Aires: Paidós, 2013.

[8] LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Tradução de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1972-73).

[9] FREUD, S. Inibição, sintoma e angústia. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XX, 1996. (Trabalho original publicado em 1926). p. 110.  

[10] LACAN, J. O Seminário, livro 10: A angústia. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; versão final de Angelina Harari e preparação de texto de André Telles; tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. (Trabalho original proferido em 1962-63). p. 22.

[11] LACAN, J. Le Séminaire, livre XXII: R.S.I. Leçon du 17 décembre 1974. (Trabalho original publicado em 1974-75).

[12] FREUD, 1926/1996, p. 112

[13] MILLER, J.-A. Introdução à leitura do Seminário 10 da angústia de Jacques Lacan. Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 43, p. 7-91, mai. 2005. p. 17.

[14] LACAN, J. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; tradução de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1979. (Trabalho original proferido em 1964). p. 31.

[15] SOUTO, S. Quanto tudo é normal, o que se analisa? In: 27ª Jornada da EBP-MG: Textos de orientação. 2024. Disponível em: https://www.jornadaebpmg.com.br/2024/quando-tudo-e-normal-o-que-se-analisa-eixo-3/. Acesso em: 01 out. 2024.

[16] SANTIAGO, J. O nome, o oco e a fonação. Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 67, p. 89-96, 2013. p. 93.

[17] PACHECO, L. A tela do fantasma e a esfoliação do Imaginário. In: 27ª Jornada da EBP-MG: Textos de orientação. 2024. Disponível em: https://www.jornadaebpmg.com.br/2024/a-tela-do-fantasma-e-a-esfoliacao-do-imaginario/. Acesso em: 01 out. 2024.

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