Argumento[1]

por Maria José Gontijo

Coordenadora da 27ª. Jornada da EBP-MG

e as neuroses continuam existindo

O título da 27ª. Jornada da EBP-MG – … “e as neuroses continuam existindo” -, encontrado por Sérgio Laia a partir de algumas indicações de Simone Souto e de conversas com Jésus Santiago precede, com reticências, a afirmação sobre a existência das neuroses. A escolha desse modo de intitular demarca certa continuidade com a investigação da Jornada anterior, a 26ª: “Há algo de novo nas psicoses, ainda”.

No Seminário 23, O Sinthoma, Lacan (2007/1975-1976) aborda as psicoses a partir do nó borromeano, e isso leva a redefinir os registros real, simbólico e imaginário. A prevalência do simbólico sobre os outros registros é descartada e a continuidade entre os três registros é afirmada. Para se alcançar esse novo modo de abordá-los, o real não é considerado apenas um resto da operação simbólica, o imaginário passa a ganhar uma dignidade por dar consistência ao corpo e o simbólico perde o estatuto ordenador que ele tinha em outros momentos do ensino de Lacan. Também nesse mesmo Seminário 23, o sinthoma é apontado como o elemento singular que poderá enlaçar os registros para todo falasser, independentemente de qual seja a estrutura clínica de cada um, mas sem que com isso venha abolir as diferenças entre as estruturas. O próprio Nome-do-Pai, como nos elucida Miller, é um sinthoma que ganha uma generalidade no âmbito das neuroses. Se o sinthoma é uma amarração que pode se apresentar nas duas estruturas clínicas, o que constituiria sua diferença quando o discernimos em uma neurose e não em uma psicose? Partindo da afirmação de que a neurose continua existindo, a Jornada da EBP-MG, além de ressaltar a continuidade de sua existência em um mundo cada vez mais tomado pelas psicoses, pretende precisar os elementos que distinguem as neuroses das psicoses, uma vez que, na abordagem dessas duas estruturas clínicas, temos como referência a concepção do último ensino de Lacan sobre o sinthoma. Explicitar, extraindo as consequências do uso dessa concepção para a direção de seu tratamento nos dias atuais é, portanto, um objetivo da 27ª Jornada da EBP-MG.

Muitas mudanças ocorreram no programa civilizatório, desde a virada do século XIX para o século XX, quando Freud inventou a psicanálise escutando as histéricas de sua época. A psicanálise conseguiu operar nos sintomas, sobretudo porque localizou seus dois componentes: o que não muda (a satisfação pulsional) e o que muda (seu envelope formal que sofre influências do tempo), tal como distingue Miller (2005). Conforme podemos constatar, no século XXI, é notável a modificação na forma dos sintomas neuróticos, e isso convoca-nos a certas mudanças nos modos como a psicanálise opera com as neuroses. Essas mudanças também determinam as possibilidades de a psicanálise continuar existindo. É o que pretendemos demonstrar na 27ª Jornada da EBP-MG.

 

Neurose e psicose:  estrutura e nó borromeano

O conceito de estrutura foi dos mais importantes legados de Lacan à psicanálise, desde o início de seu ensino. Precisar a diferença, e mesmo a oposição, entre a neurose e a psicose foi uma resposta de Lacan à inquietação de Freud quanto à presença do inconsciente recalcado para os neuróticos e sua ausência nas psicoses.

A prática psicanalítica sempre se valeu de um tempo preliminar como crucial para que, por exemplo, o diagnóstico diferencial entre neurose e psicose se realizasse, considerando os sinais que poderiam estabelecer a diferença de funcionamento psíquico em cada uma. Concluir por uma delas – ou neurose ou psicose – determinava, em um momento mais inicial da história da psicanálise, a indicação ou a contraindicação do  tratamento analítico ou, em outros momentos, uma condução distinta do tratamento no tocante ao manejo da transferência e à possibilidade de entrada em análise. Nesse contexto, a psicose, muitas vezes, foi tomada como uma estrutura deficitária em relação à neurose. Por sua vez, Miller (1998) nomeia de descontinuísta a clínica estrutural, baseada na oposição entre neurose e psicose, mesmo que não mais pautada, necessariamente, pela concepção deficitária.  A neurose, considerando o inconsciente recalcado e suas formações, alcançou o estatuto de servir de modelo ao que se opera em termos analíticos.

O ensino de Lacan, em seu retorno a Freud, ainda se valia de um mundo onde a instância simbólica tinha uma função ordenadora. O simbólico delimitava algo concernente ao real e o recurso a ele permitia realizar cortes com relação aos fenômenos imaginários.

No século XXI, o registro simbólico como ordenador do mundo é abalado, o que implica tomar em outros termos a clínica psicanalítica, assim como o trabalho epistêmico da psicanálise. No que ficou conhecido como o último ensino de Lacan, real, simbólico e imaginário são tomados como registros ainda diferentes, mas, de forma até então inédita, contíguos e não hierárquicos entre si. O próprio ordenamento conferido pelo Nome-do-Pai em seu estatuto simbólico foi se modificando ao longo do ensino de Lacan, conforme elucida Miller (1992) no Comentário sobre o seminário inexistente. Lacan primeiro o pluralizava e, posteriormente, o toma como um sintoma. Nesse percurso, encontramos o deslocamento da clínica estrutural para a clínica dos nós sem que, no entanto, uma se desfaça da outra. Desse modo, Lacan me parece também colocar a clínica das neuroses e a clínica das psicoses em relação de contiguidade. Neurose e psicose, em suas diferenças, não se encontram mais tão em oposição como anteriormente. Ambas recorrem ao sinthoma como modo de amarrar os registros real, simbólico e imaginário, segundo nos ensina o Seminário 23. Desse modo, podemos considerar a clínica que se constrói com o último ensino de Lacan, localizado por Miller do Seminário 20 (Mais, ainda) ao Seminário 23 (O Sinthoma), é continuísta porque toma o sinthoma como o elemento que amarra os registros real, simbólico e imaginário nas psicoses e nas neuroses.

 

A inibição para imaginar o real na neurose

Em seus dois últimos Seminários, o Seminário 24 (“L´insu qui sait (…)”) e o Seminário 25, (“Momento de concluir”) Lacan muda, novamente, a perspectiva, tal como nos elucida Miller (2014). Por meio da expressão L´une bévue, ele se dedica a ir mais além do inconsciente freudiano que, em alemão, se escreve como Unbewust, uma palavra que, em sua ressonância francesa, se faz escutar como L´une bévue.

Miller (2014) considera o ensino que se extrai desses dois Seminários como o ultimíssimo ensino de Lacan. O sinthoma permanece como o modo de amarração entre os registros, mas, de forma distinta nas neuroses e nas psicoses. O recurso aos nós permitiu a Lacan mostrar, a partir de Joyce, o sinthoma e sua função de amarração ou de grampo. Nas psicoses, a homogeneidade entre os registros se apresenta mais facilmente, e isso favoreceu Lacan a destacar, mais diretamente, o elemento – o sinthoma – que possibilita a amarração. No caso de Joyce, Lacan afirma que a criação de um Ego lhe permitiu dar consistência ao corpo diferente daquele que a alienação faz os neuróticos tomaram como “corpo próprio”.

Nas neuroses, como nos mostra Jésus Santiago (2024) o corpo já se encontra constituído pela imagem que, por sua vez, é dependente da função simbólica. Miller (2014) ressalta que a tendência do simbólico é prosseguir no imaginário, como acontece no sonho e no fantasma. Porém, essa tendência, verificada na neurose, torna-se problemática quando o simbólico não é considerado uma ordem que prevalece sobre os outros registros.  Dessa forma, quando o simbólico se torna inadequado para abordar o real, tal como Lacan destaca em seu ultimíssimo ensino, resta-nos imaginar o real e não mais propriamente simbolizar o real. Todavia, Lacan também ressalta que há uma dificuldade do neurótico em recorrer ao imaginário para fazer uma ideia do real, pois, na neurose, entre o imaginário e o real há uma hiância.

Lacan, na lição “O inconsciente freudiano e o nosso”, do Seminário 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, aborda a hiância como o cerne da causalidade do inconsciente. De acordo com ele, a lei do significante se introduz onde a hiância se apresenta. No ultimíssimo ensino de Lacan, segundo Miller (2014), a hiância é de outra natureza. Em vez de mobilizar a cadeia significante, ela implica a inibição, a inibição para imaginar o real. Logo, se no Seminário 11, a hiância produz tropeço (e esse termo, mesmo aplicado à cadeia significante não deixa de evocar uma ação motora e, mais ainda, um ato), no Seminário 25, a hiância nos faz confrontar com a inibição que, por sua vez, implica uma parada, uma detenção do movimento, um comprometimento do ato. Portanto, mesmo que com característica diferentes, a hiância está na base do inconsciente para Lacan.

Há que ressaltar que Lacan se refere à relação entre imaginário e real de um modo diferente em outro momento de sua obra.  Na primeira lição do Seminário 23, a propósito de Joyce, ele fala da homogeneidade do imaginário com o real. Na última lição do Seminário 25, conforme podemos ler em El ultimíssimo Lacan, destaca-se a hiância entre eles. A hiância dificulta o neurótico imaginar o real, diante dela há inibição para imaginar e isso faz o neurótico girar em círculos. Nesse giro sem fim, o real escapa.

 

 

O sinthoma do falasser e  L´une bévue

Miller (2014), em seu Curso, assinala a presença de um retorno realizado por Lacan em seus dois últimos seminários, embora de forma distinta daquele que ocorreu no início do seu ensino. No tempo conhecido como retorno a Freud, Lacan recorreu às primeiras obras freudianas sobre o inconsciente: A interpretação dos sonhos, Psicopatologia da vida cotidiana e Os chistes e sua relação com o inconsciente. Por meio delas, ele pôde propor a base simbólica do inconsciente e a função do significante. Miller destaca que no Seminário 5, As formações do inconsciente, e no Seminário 11, Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise, os atos falhos, os chistes, os sonhos, ou seja, as formações do inconsciente, eram definidos como tropeços da ordem simbólica. Em seus dois últimos Seminários, o 24 e o 25, segundo Miller (2014), Lacan busca isolar a unidade constitutiva do inconsciente apartada da elucubração simbólica. Trata-se, assim, não do inconsciente estruturado como uma linguagem, como ele propôs em seu retorno a Freud, mas do inconsciente L´une bévue. No lugar da unidade significante,  L´une bévue.

Em seu texto, “O inconsciente e o corpo falante”, Miller observa haver, já antes do último ensino de Lacan, um movimento de ir mais além do inconsciente freudiano. Ele nos remete ao escrito “Televisão”, quando interpela Lacan sobre a esquisitice desse termo. Para Miller, essa palavra – inconsciente – não acompanhava o que Lacan havia desenvolvido em sua doutrina. Naquela ocasião, Lacan recusou a crítica de Miller, respondendo-lhe: “Freud não encontrou uma melhor e não há porque voltar a isso”. De acordo com Miller, Lacan admitiu que o inconsciente não era uma palavra adequada, mas resistiu em mudá-la. Todavia, dois anos depois, no escrito “Joyce, o sintoma”, Lacan voltou atrás e propôs o neologismo falasser no lugar do inconsciente. Miller assinala que essa substituição indica a mudança da psicanálise no século XXI, ao levar em conta outro simbólico, não mais ordenador, e outro real.

O falasser é o termo proposto por Lacan para substituir o termo inconsciente, ressalta Miller (2016). Trata-se de um neologismo contemporâneo ao sinthoma e ele marca as mudanças presentes no último ensino para abordar o inconsciente. No lugar do sintoma como formação do inconsciente, encontramos o sinthoma do falasser. O inconsciente estruturado como uma linguagem concebe o sintoma como uma metáfora que produz sentido na remissão de um significante a outro. O sinthoma do falasser é um acontecimento de corpo, uma emergência de gozo, não de sentido.

Como já abordado, no Seminário 23, O Sinthoma, encontramos a equivalência do imaginário ao corpo. Miller (2014) considera o ultimíssimo ensino uma continuidade do anterior, mas com uma nova topologia, que ele chama de visual. Ele ressalta que Lacan sempre se valeu de visuais na mostração da psicanálise: desenhos no quadro, esquemas, matemas, grafos e topologia. No Seminário 23, o nó borromeano prevaleceu. Porém, nos seus dois últimos Seminários, ele modificou o visual, ele não recorreu ao nó, mas ao toro, figura que se assemelha à câmera de ar. Nesse recurso ao toro não teríamos, a meu ver, um abandono do nó borromeano, mas a abertura a outro modo de abordagem do real, do simbólico e do imaginário. Miller afirma que essa escolha se deve ao acesso privilegiado ao real propiciado pelo toro. Lacan generalizou o toro a tal ponto que Miller (2014) considerou nomear uma das lições do Seminário 24 “O universo tórico” e, desse Seminário, Lacan extraiu a tese da estrutura tórica do homem.

Miller recorre ao poema “Os homens ocos” de T.S. Eliot para se referir ao homem tórico – um homem oco. Mas ele ressalta que Lacan não privilegiou o buraco no centro do toro, como em outros momentos de seu ensino, mas em seu interior. Em torno desse buraco real, presente no interior do toro, Lacan nos convida a localizar o que chamaríamos do looping neurótico, seu andar em círculos, seu deixar-se emaranhar-se dando voltas e mais voltas, muitas vezes como um modo de se defender do real, de não ultrapassar a hiância entre o real e o imaginário.

Miller (2014) também enfatiza que no Seminário 25, Momento de concluir, diante do silêncio do real e da desconfiança no simbólico que sempre mente, fica o recurso ao imaginário, ao corpo. O corpo é tomado como o tecido no qual a análise se desenvolve. Lacan chega a afirmar que a análise é anulada se orientada pelo simbólico e estaríamos fazendo abstração, caso tomássemos essa direção. A orientação de uma análise se dá em direção ao real e, como ressalta-nos o ultimíssimo Lacan, em uma análise, trata-se de ultrapassar a hiância entre imaginário e real. Perante o silêncio do real, temos o recurso de imaginá-lo, apontar o dedo para a unidade elementar que não é mais o significante, mas L´une bévue.

Lacan propôs L´une bévue, em seu ultimíssimo ensino, em decorrência do sinthoma. Ele concebeu a neurose como associada ao âmbito social, segundo observa Miller (2014), pois se trata de uma estrutura formada a partir do inconsciente como discurso do Outro. Com o sinthoma, Lacan buscou localizar a singularidade, o Um, e ele o propôs como um recurso para cada um amarrar os registros real, simbólico e imaginário independentemente da estrutura, neurótica ou psicótica.  Nos tempos de declínio do Outro, quando se apresenta a dificuldade de o inconsciente se manter como um discurso no qual se crê, Lacan inventa um significante novo, L´une bévue. Esse significante é, mais propriamente dizendo, uma imagem à qual o neurótico recorre quando o simbólico é insuficiente para abordar o real. É preciso considerar que, mesmo desconfiando do inconsciente freudiano, Lacan inventa um termo que ressoa como ele, e isso é decisivo. Com L´une bévue, Unbewusst, de um modo diferente do freudiano, o inconsciente continua existindo, corroborando, de forma inédita, a continuidade da existência das neuroses

 

Referências:

LACAN, J. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise. Versão brasileira de M.D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. 2ª. ed. (Trabalho original proferido em 1964).

LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985, 2ª. ed. (Trabalho original proferido em 1972-1973).

LACAN, J. O Seminário, Livro 23: O sinthoma. Tradução de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Trabalho original proferido em 1975/1976).

LACAN, J. Le Séminaire, Livre 24: L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre. Lições publicadas na revista: Ornicar? Paris, n. 12-13 (1977), n. 17-18 (1979). (Trabalho original proferido em 1976-1977).

MILLER, J-A. Comentário del seminario inexistente. Buenos Aires: Manantial, 1992.

MILLER, J-A. A Conversação. In: Os casos raros, inclassificáveis da Clínica Psicanalítica. A Conversação de Arcachon. São Paulo: Biblioteca Freudiana Brasileira, 1998. p. 103.

MILLER, J-A. El Otro que no existe y sus comités de ética. Seminario en colaboración com Éric Laurent. Buenos Aires: Paidós. 2005.

MILLER, J-A. Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller: El ultimíssimo Lacan. Buenos Aires: Paidós. 2014.

MILLER, J.-A. O inconsciente e o corpo falante. In: Scilicet: O Corpo Falante – Sobre o inconsciente no século XXI. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2016, p.19-32.

SANTIAGO, J. O imaginário na clínica do sinthoma. Trabalho apresentado no Seminário de Orientação lacaniana da EBP-MG em 21/03/24 e disponível no site desta 27ª Jornada da EBP-MG em:

 

[1] Além de elaborações pessoais, a redação deste Argumento foi realizada a partir de discussões periódicas com Bernardo Micherif, também coordenador da 27ª Jornada da EBP-MG, e contou com a revisão de Sérgio Laia, diretor da EBP-MG.