Argumento

Há algo de novo nas psicoses... ainda[1]


O título da 26ª Jornada da Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Minas Gerais, nos remete imediatamente à Jornada da EBP-MG ocorrida em 1999, que teve como título Há algo de novo nas psicoses. Naquele momento, sob as ressonâncias do Conciliábulo de Angers (1996), da Conversação de Arcachon (1997) e da Convenção de Antibes (1998), vivíamos um relançamento da clínica psicanalítica a partir do que Jacques-Alain Miller pôde nomear como “psicoses ordinárias”, discussão que produziu efeitos diretos na vida da EBP-MG, ampliando sua inserção na cidade.

A questão primeira a se colocar então é o que faz com que esse tema, surgido de forma tão pungente ao final do século passado, seja retomado agora. Ou seja, podemos extrair algo de novo, ao nos determos sobre as psicoses nesse início do século XXI, que orientaria a clínica psicanalítica em seus desafios atuais?

O próximo Congresso da Associação Mundial de Psicanálise, previsto para acontecer em 2024, terá como título Todo mundo é louco. Esse aforisma, pronunciado por Lacan em 1978, nos serviria como ponto de partida para interrogar o lugar da psicose no mundo contemporâneo diante da loucura universal e generalizada.

Parece-me ser também essa a direção dada por Sérgio Laia ao propor para a Jornada deste ano retomar o título da Jornada de 1999, porém acrescido agora do advérbio ainda. Num texto que será publicado na Curinga n. 55 e que já está disponível no site da 26ª Jornada (https://www.jornadaebpmg.com.br/2023/textos/por-que-as-psicoses-ainda/), Sérgio observa que constatamos em nossa prática clínica, tanto nos consultórios como nas instituições, a presença cada vez mais significativa de casos de psicose. Mais além também da clínica, constatamos também “manifestações político-coletivas de ordenamentos extremistas e contrários à diversidade”[2] que surgem como indicativos da loucura que se propaga profusamente em nossos dias. Essa profusão atual das psicoses, nos diz o diretor da EBP-MG, não seria, porém, incompatível com sua diluição. Ou seja, as psicoses, “ao se proliferarem nas formas do comum, do ordinário e da ordem do dia – se ‘normalizariam’ e passariam até como se nem psicoses fossem”[3].

 

“Loucos normais”[4]

 

Seguindo nessa direção, encontramos no texto “Lições sobre a apresentação de doentes” o relato de Jacques-Alain Miller sobre o que ele pôde extrair do ensino de Lacan em relação às noções de loucura e norma. Segundo Miller, nas apresentações que realizava no Hospital Sainte-Anne, Lacan costumava entrevistar “pessoas normais”, ou seja, pacientes que não apresentavam grandes delírios ou mesmo fenômenos elementares extraordinários, como as alucinações verbais. Porém, essa pretensa normalidade, que se equivaleria ao ordinário e faria com que esses sujeitos se diluíssem na cena do mundo, seria marcada por uma contínua flutuação e inconsistência vital.

A apresentação de pacientes realizada em abril de 1976 ilustra bem tal flutuação, já que o sujeito ali em jogo se incluiria, conforme diz Miller, evocando Lacan, “entre o número desses loucos normais que constituem o nosso ambiente”[5].

Senhorita Boyer conta, então, a Lacan que gostaria de ter um lugar na sociedade e na vida ao dizer:

Estou em busca de um lugar para mim. Não acho esse lugar porque não tenho lugar […] eu havia me identificado com uma pessoa que não se parece comigo […] eu tinha seis, sete anos. Éramos um grupo de menininhas. Eu havia notado que ela era loira, muito mais bonita que as outras. Frequentemente eu a penteava. […] parecia que éramos parecidas. Parecia, mas certamente ela não era parecida comigo. O que eu buscava na minha ideia era parecer com alguém. É a condição de vida. Eu não tenho vida, eu tiro a vida do outro, é isso que busco.[6]

 

Mais adiante, Senhorita Boyer revela que gostaria de viver suspensa como um vestido pendurado no varal e acrescenta: “eu sou um pouco um teatro de marionetes […] eu represento a vida de todos os dias, o corpete que a gente engoma […] eu sempre procurava encontrar um lugar […] Não sei onde estou, estou em todos os lugares”[7].

Terminada a entrevista, Lacan é contundente ao dizer que aquela mulher não tinha a menor ideia do corpo que ela teria que colocar sob o vestido, pois não havia ali ninguém para vestir a roupa e que, portanto, esse sujeito ilustrava bem o que ele chamava de semblante.

Miller, ao desdobrar esse comentário de Lacan, localiza a posição de puro semblante desse sujeito no fato de que ali as identificações não se precipitavam num ego, pois não haviaria um cristalizador que pudesse captar a imagem no espelho. Teríamos, assim, com esse imaginário desvairado, pois sem ego, um corpo sem consistência e, portanto, sem objeto a que preenchesse os parêntesis. Miller proporá escrever esse desfuncionamento na relação com o próprio corpo com o matema i(  ).

No último capítulo do Seminário 23, intitulado “A escrita do ego”[8], Lacan definirá a psicologia como não sendo outra coisa que a imagem confusa que temos do nosso próprio corpo. Ou seja, o falasser tem uma relação corporal sempre confusa, pois essa relação se sustentaria pela imagem, mas por uma imagem afetada por pontos opacos inscritos nesse corpo.

Seriam, portanto, esses pontos obscuros que tornam a relação com o corpo sempre como estrangeiro, o que acaba oferecendo suporte para a imagem corporal, permitindo assim que o falasser tenha uma ideia de si como um corpo.

Essa “uma ideia de si como um corpo” cumpriria a função de se cristalizar como ego. E como nos diz Lacan, “se o ego é dito narcísico é porque, em certo nível, há alguma coisa que suporta o corpo como imagem”[9].

Tentemos aqui desdobrar um pouco mais as várias noções em jogo nessa passagem do Seminário 23, proferida, inclusive, um mês após a apresentação da paciente  Boyer.

Temos, então, ali a dimensão narcísica do ego que remeteria ao amor-próprio e à adoração do falasser ao seu corpo. Amor esse primário e anterior ao Outro do significante. Porém, para que esse amor à imagem corporal se cristalize num ego, essa imagem precisa se sustentar no que a afeta como gozo do Um, efeito de lalíngua sobre o corpo.

O objeto a, essa singular invenção lacaniana, seria o que desse gozo do Um se circunscreve como um elemento e que virá dar uma sustentação real à imagem corporal. Sem essa sustentação do objeto a, temos no caso da Senhorita Boyer uma contínua flutuação de um vestido sem corpo, portanto, um puro semblante.

Vemos, assim, como com Lacan a consistência corporal ganha uma distinção nítida de uma suposta consistência biológica para se instalar numa dimensão mental: a ideia de si como um corpo.

A lição que no final das contas extraímos da apresentação de pacientes realizada por Lacan e dos comentários de Miller é de que todo ser falante não escapa da afetação de gozo em seu corpo gerada por lalíngua e que, portanto, sua relação com o próprio corpo é sempre mediada pelo mental.

Como entender, então, o que Lacan chama de doença da mentalidade, já que é assim que ele nomeia o que estaria em jogo para Senhorita Boyer? Pois, apesar de Lacan não considerar tal doença como séria e por acabar se referindo a ela como vindo se somar aos vários loucos que compõem o nosso ambiente, Miller destacará que o que estaria ali presente seria o fato de esses sujeitos não levarem a palavra a sério, ou seja, lidariam com a palavra sem um lastro no real.

 

“Miscelânea de fora-da-natureza”[10]

 

Valho-me dessas formulações de Lacan e Miller sobre a doença da mentalidade acreditando que ela nos fornece uma chave de leitura da generalização dos semblantes na expansão do universo social.

Ao apresentar o tema do próximo Congresso da Associação Mundial de Psicanálise, Miller retoma a discussão sobre como na atualidade o discurso da ciência e o discurso do direito convergem para autorizar o uso de novos semblantes.

O que haveria de novo nesses semblantes sustentados pela demanda, por exemplo, de igualdade entre os sexos ou mesmo de um mundo composto de indivíduos iguais, no qual, segundo Miller, tudo passa a ser uma questão de arranjos e montagens? Segundo ele, o novo vem do fato de que essas demandas já não são mais inibidas pela tradição, o passado já não conta, como também o modo habitual de se fazer as coisas já não funciona mais como garantia.

Sabemos que Lacan antecipou o fundamento desse novo veiculado hoje de forma ampla pela opinião pública ao afirmar que a diferença sexual fundada na natureza – ou seja, pela anatomia – não constitui uma prova dessa assimetria: “portanto, a natureza não seria uma norma, pois não há norma do sexo.”[11] Ao declarar que a relação sexual não existe, Lacan questiona a função da natureza em sua face de semblante.

Nessa direção, encontramos, no início do Seminário 23, Lacan nos dizendo, ou pelo menos é assim que Miller traduz essa passagem, de como a natureza não nos serviria de norma, pois uma vez que distingamos algo por meio de um nome, estamos obrigados a dizer que esse algo não é natural. Por isso, a natureza se encontraria esvaziada de tudo o que não é natural até o ponto de reduzir a natureza a uma miscelânea de fora-da-natureza.

Podemos, então, interrogar se, diante da explicitação de que a natureza não é uma garantia, o que vemos surgir seria uma proliferação de semblantes que, ao recusarem os pontos opacos na relação com o corpo, fazem equivaler a inexistência da relação sexual ao sexual sem Real?

A partir da profusão e da simultânea diluição das psicoses mencionadas inicialmente, Sérgio Laia indaga se hoje a psicose não estaria por fazer as vezes de uma norma social.

Mesmo considerando o alerta de Sérgio Laia sobre o que essa proposta pode soar como um contrassenso, pois não podemos ignorar as excepcionalidades das psicoses com relação à lei e à ordem simbólica, pareceu-me interessante perguntar se essa ideia de uma “norma” psicótica não nos esclareceria também o que da loucura que, se propagada hoje, diz respeito à desarticulação do Real em relação ao Simbólico e ao Imaginário, fazendo com que, solto, ele, o Real, apresente de maneira feroz sua face sem lei. Se hoje essa é uma das vias pela qual “o pesadelo da história”[12] toma forma, como então a psicanálise de orientação lacaniana pode operar?

A aposta é que possamos levar adiante essa questão a partir dos três eixos temáticos que orientarão o trabalho em torno da 26ª Jornada, a saber:

 

  • O mundo rumo à psicose
  • Diagnosticar e despatologizar
  • As flutuações do sexo

 

Convidamos, então, a todos e a todas a participar dessa investigação que se dará através dos cartéis, alguns inclusive já em funcionamento, como também nos cinco Seminários Preparatórios que ocorrerão durante este ano e, por fim, nas Plenárias e Mesas da Jornada Clínica, que acontecerão na Jornada propriamente dita.

A decisão da atual diretoria da EBP-MG de manter todos esses encontros presenciais nos diz de como a psicanálise, para não ser engolida pelo pesadelo da história, precisa se manter o mais perto possível da relação entre o dizer e o corpo, “o que na tradição analítica denomina-se pulsão”[13].

 

Helenice de Castro
Coordenadora da 26ª Jornada da EBP-MG

[1] A versão completa desse texto encontra-se disponível neste site na aba “textos de orientação” Acesse AQUI.

[2] LAIA, S. Por que as psicoses… ainda. Curinga, Revista da Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Minas Gerais, Belo Horizonte, n. 53, 2023. Também disponível neste site. Acesse AQUI

[3] Ibidem.

[4] MILLER, J.-A. Lições sobre a apresentação de doentes. In: MILLER, J.-A. Matemas I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996. p. 147.

[5] Ibidem, p. 147.

[6] LACAN, J. Apresentação da srta. Boyer. In: MILLER, J.-A., ALBERTI, C., Redivivus. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 2023. p. 159, 161, 168.

[7] Ibidem, p.171 e 172.

[8] LACAN, J. O seminário, livro 23: O sinthoma. (1975-1976) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. p. 139-151.

[9] Ibidem, p. 146.

[10] LACAN, J., 2007, op. cit., p.13.

[11] MILLER, J.-A. Piezas sueltas. (2004-2005) Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller. Buenos Aires: Paidós, 2013. p. 397.

[12] Ibidem, p. 397.

[13] MILLER, 2013, op. cit., p.397.

Eixos

1) O mundo rumo à psicose

Tanto nos consultórios como nas instituições, especialmente quando nos orientamos pela psicanálise, constatamos uma presença cada vez mais significativa de casos de psicose. Além da clínica, em ordenamentos extremistas e contrários à diversidade, mas ainda na errância que se impõe como a vida cotidiana de muitos, também encontramos marcas do quanto a loucura se espraia mesmo em nosso mundo. Vivemos uma época em que as psicoses parecem se diluir na presença incontornável do digital; no uso indiscriminado (mas muitas vezes medicamente autorizado) de psicotrópicos e outros remédios relacionados à ansiedade ou à prática sexual; na disseminação de drogas mais conhecidas e, também, das sintéticas; na emergência de atos considerados “imotivados” e mesmo violentos, ou no que se apresenta justamente como uma espécie de oposição, ou seja, na procrastinação, no adiamento e na suspensão do ato. Poderíamos considerar, então, que as psicoses – tradicionalmente concebidas como alheias à ordem simbólica, segregadas historicamente do convívio social – tornam-se tão comuns a ponto de se definirem como uma espécie de “norma” para nossos dias? Ao mesmo tempo, a experiência analítica com os psicóticos mostra-nos que, mesmo estando mais em consonância com a “ordem do dia”, isso não lhes confere, por si só, um “lugar no mundo”. Torna-se, portanto, decisivo destacarmos e esclarecermos o diferencial que a psicanálise de orientação lacaniana tem neste mundo que parece seguir cada vez mais rumo à psicose.

2) Diagnosticar e despatologizar

No âmbito dos diagnósticos protocolares, verificamos uma multiplicação dos diagnósticos de transtornos mentais e o favorecimento de novos modos de se fazer identificar. Assim, diferente do estigma que ainda acompanha as psicoses, declara-se hoje, por exemplo, “sou  bipolar” ou “sou hiperativo” com mais tranquilidade e até orgulho. Muitas vezes, os diagnósticos de psicose tornam-se menos praticados porque a clínica se perde ao se ver às voltas com tantos diagnósticos quantos casos a serem diagnosticados, e até com categorias do tipo “transtorno mental não-especificado”. Essa diluição e, inclusive, a “desconstrução das psicoses” empreendida nos catálogos de diagnósticos repercutiriam, mesmo que às avessas, a reivindicação contemporânea de igualdade entre os seres falantes expressa pelo termo “despatologização”: diagnosticar passaria a se equivaler a “rotular”, o que seria incompatível em um mundo aberto à diversidade ou, ainda, se todos têm um transtorno, não haveria transtorno algum. Como diferenciar essa diluição e o que Lacan nos propõe com seu aforisma “Todo mundo é louco” ou do que Freud já anunciava com sua “psicopatologia da vida cotidiana”? A concepção psicanalítica e não-segregativa do sintoma como parceiro e localizador de um modo muitas vezes até paradoxal de satisfação não nos convidaria mais a conjugar “diagnosticar” e “despatologizar” do que a tomar essas duas operações como necessariamente antagônicas e inarticuláveis?

3) As flutuações do sexo

Em nossos dias – e não apenas devido à proliferação das psicoses – constatamos uma fluidez das identificações, inclusive (e sobretudo), no que concerne aos corpos sexuados: em vez de um marcador único que localizaria, por exemplo, entre os sexos, uma presença e uma ausência ou um mais e um menos, vemos o múltiplo se disseminar. As flutuações do sexo tomam, então, um alcance espectral, configurando um leque, e com todas as suas nuances e gradações, do hiper-sexual ao assexuado, da diversidade dos gêneros ao gender fucking, das parcerias tóxico-abusivas à abertura das relações… Embora a profusão de modos de experimentar o sexo permita a cada corpo se alojar, inclusive, em lugares alternativos de grande destaque e reconhecimento em nossa civilização, a prática analítica mostra-nos que essa flutuação atual do sexo não impede que corpos sejam assolados pela angústia de um não-lugar. Por que essa flutuação desemboca em experiências de anulações subjetivas? Quando, ao contrário, a inconsistência do marcador único dá lugar a apresentações e arranjos inéditos e que não encontravam propriamente lugar em uma civilização menos enredada pelo múltiplo? Se Freud, em um tempo muito diferente do nosso, já demarcava, no conceito mesmo de pulsão, a variabilidade do objeto, mas, também, a constância de uma força e a satisfação incontornável, como a psicanálise nos permite lidar com as flutuações do sexo sem nos deixarmos simplesmente arrebatar pela diversidade ou nos enveredar na nostalgia de uma suposta e conservadora estabilidade?