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Coordenadora da 27ª. Jornada da EBP-MG

e as neuroses continuam existindo

O título da 27ª. Jornada da EBP-MG – … “e as neuroses continuam existindo” -, encontrado por Sérgio Laia a partir de algumas indicações de Simone Souto e de conversas com Jésus Santiago precede, com reticências, a afirmação sobre a existência das neuroses. A escolha desse modo de intitular demarca certa continuidade com a investigação da Jornada anterior, a 26ª: “Há algo de novo nas psicoses, ainda”.

No Seminário 23, O Sinthoma, Lacan (2007/1975-1976) aborda as psicoses a partir do nó borromeano, e isso leva a redefinir os registros real, simbólico e imaginário. A prevalência do simbólico sobre os outros registros é descartada e a continuidade entre os três registros é afirmada. Para se alcançar esse novo modo de abordá-los, o real não é considerado apenas um resto da operação simbólica, o imaginário passa a ganhar uma dignidade por dar consistência ao corpo e o simbólico perde o estatuto ordenador que ele tinha em outros momentos do ensino de Lacan. Também nesse mesmo Seminário 23, o sinthoma é apontado como o elemento singular que poderá enlaçar os registros para todo falasser, independentemente de qual seja a estrutura clínica de cada um, mas sem que com isso venha abolir as diferenças entre as estruturas. O próprio Nome-do-Pai, como nos elucida Miller, é um sinthoma que ganha uma generalidade no âmbito das neuroses. Se o sinthoma é uma amarração que pode se apresentar nas duas estruturas clínicas, o que constituiria sua diferença quando o discernimos em uma neurose e não em uma psicose? Partindo da afirmação de que a neurose continua existindo, a Jornada da EBP-MG, além de ressaltar a continuidade de sua existência em um mundo cada vez mais tomado pelas psicoses, pretende precisar os elementos que distinguem as neuroses das psicoses, uma vez que, na abordagem dessas duas estruturas clínicas, temos como referência a concepção do último ensino de Lacan sobre o sinthoma. Explicitar, extraindo as consequências do uso dessa concepção para a direção de seu tratamento nos dias atuais é, portanto, um objetivo da 27ª Jornada da EBP-MG.

Muitas mudanças ocorreram no programa civilizatório, desde a virada do século XIX para o século XX, quando Freud inventou a psicanálise escutando as histéricas de sua época. A psicanálise conseguiu operar nos sintomas, sobretudo porque localizou seus dois componentes: o que não muda (a satisfação pulsional) e o que muda (seu envelope formal que sofre influências do tempo), tal como distingue Miller (2005). Conforme podemos constatar, no século XXI, é notável a modificação na forma dos sintomas neuróticos, e isso convoca-nos a certas mudanças nos modos como a psicanálise opera com as neuroses. Essas mudanças também determinam as possibilidades de a psicanálise continuar existindo. É o que pretendemos demonstrar na 27ª Jornada da EBP-MG.

 

Neurose e psicose:  estrutura e nó borromeano

O conceito de estrutura foi dos mais importantes legados de Lacan à psicanálise, desde o início de seu ensino. Precisar a diferença, e mesmo a oposição, entre a neurose e a psicose foi uma resposta de Lacan à inquietação de Freud quanto à presença do inconsciente recalcado para os neuróticos e sua ausência nas psicoses.

A prática psicanalítica sempre se valeu de um tempo preliminar como crucial para que, por exemplo, o diagnóstico diferencial entre neurose e psicose se realizasse, considerando os sinais que poderiam estabelecer a diferença de funcionamento psíquico em cada uma. Concluir por uma delas – ou neurose ou psicose – determinava, em um momento mais inicial da história da psicanálise, a indicação ou a contraindicação do  tratamento analítico ou, em outros momentos, uma condução distinta do tratamento no tocante ao manejo da transferência e à possibilidade de entrada em análise. Nesse contexto, a psicose, muitas vezes, foi tomada como uma estrutura deficitária em relação à neurose. Por sua vez, Miller (1998) nomeia de descontinuísta a clínica estrutural, baseada na oposição entre neurose e psicose, mesmo que não mais pautada, necessariamente, pela concepção deficitária.  A neurose, considerando o inconsciente recalcado e suas formações, alcançou o estatuto de servir de modelo ao que se opera em termos analíticos.

O ensino de Lacan, em seu retorno a Freud, ainda se valia de um mundo onde a instância simbólica tinha uma função ordenadora. O simbólico delimitava algo concernente ao real e o recurso a ele permitia realizar cortes com relação aos fenômenos imaginários.

No século XXI, o registro simbólico como ordenador do mundo é abalado, o que implica tomar em outros termos a clínica psicanalítica, assim como o trabalho epistêmico da psicanálise. No que ficou conhecido como o último ensino de Lacan, real, simbólico e imaginário são tomados como registros ainda diferentes, mas, de forma até então inédita, contíguos e não hierárquicos entre si. O próprio ordenamento conferido pelo Nome-do-Pai em seu estatuto simbólico foi se modificando ao longo do ensino de Lacan, conforme elucida Miller (1992) no Comentário sobre o seminário inexistente. Lacan primeiro o pluralizava e, posteriormente, o toma como um sintoma. Nesse percurso, encontramos o deslocamento da clínica estrutural para a clínica dos nós sem que, no entanto, uma se desfaça da outra. Desse modo, Lacan me parece também colocar a clínica das neuroses e a clínica das psicoses em relação de contiguidade. Neurose e psicose, em suas diferenças, não se encontram mais tão em oposição como anteriormente. Ambas recorrem ao sinthoma como modo de amarrar os registros real, simbólico e imaginário, segundo nos ensina o Seminário 23. Desse modo, podemos considerar a clínica que se constrói com o último ensino de Lacan, localizado por Miller do Seminário 20 (Mais, ainda) ao Seminário 23 (O Sinthoma), é continuísta porque toma o sinthoma como o elemento que amarra os registros real, simbólico e imaginário nas psicoses e nas neuroses.

 

A inibição para imaginar o real na neurose

Em seus dois últimos Seminários, o Seminário 24 (“L´insu qui sait (…)”) e o Seminário 25, (“Momento de concluir”) Lacan muda, novamente, a perspectiva, tal como nos elucida Miller (2014). Por meio da expressão L´une bévue, ele se dedica a ir mais além do inconsciente freudiano que, em alemão, se escreve como Unbewust, uma palavra que, em sua ressonância francesa, se faz escutar como L´une bévue.

Miller (2014) considera o ensino que se extrai desses dois Seminários como o ultimíssimo ensino de Lacan. O sinthoma permanece como o modo de amarração entre os registros, mas, de forma distinta nas neuroses e nas psicoses. O recurso aos nós permitiu a Lacan mostrar, a partir de Joyce, o sinthoma e sua função de amarração ou de grampo. Nas psicoses, a homogeneidade entre os registros se apresenta mais facilmente, e isso favoreceu Lacan a destacar, mais diretamente, o elemento – o sinthoma – que possibilita a amarração. No caso de Joyce, Lacan afirma que a criação de um Ego lhe permitiu dar consistência ao corpo diferente daquele que a alienação faz os neuróticos tomaram como “corpo próprio”.

Nas neuroses, como nos mostra Jésus Santiago (2024) o corpo já se encontra constituído pela imagem que, por sua vez, é dependente da função simbólica. Miller (2014) ressalta que a tendência do simbólico é prosseguir no imaginário, como acontece no sonho e no fantasma. Porém, essa tendência, verificada na neurose, torna-se problemática quando o simbólico não é considerado uma ordem que prevalece sobre os outros registros.  Dessa forma, quando o simbólico se torna inadequado para abordar o real, tal como Lacan destaca em seu ultimíssimo ensino, resta-nos imaginar o real e não mais propriamente simbolizar o real. Todavia, Lacan também ressalta que há uma dificuldade do neurótico em recorrer ao imaginário para fazer uma ideia do real, pois, na neurose, entre o imaginário e o real há uma hiância.

Lacan, na lição “O inconsciente freudiano e o nosso”, do Seminário 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, aborda a hiância como o cerne da causalidade do inconsciente. De acordo com ele, a lei do significante se introduz onde a hiância se apresenta. No ultimíssimo ensino de Lacan, segundo Miller (2014), a hiância é de outra natureza. Em vez de mobilizar a cadeia significante, ela implica a inibição, a inibição para imaginar o real. Logo, se no Seminário 11, a hiância produz tropeço (e esse termo, mesmo aplicado à cadeia significante não deixa de evocar uma ação motora e, mais ainda, um ato), no Seminário 25, a hiância nos faz confrontar com a inibição que, por sua vez, implica uma parada, uma detenção do movimento, um comprometimento do ato. Portanto, mesmo que com característica diferentes, a hiância está na base do inconsciente para Lacan.

Há que ressaltar que Lacan se refere à relação entre imaginário e real de um modo diferente em outro momento de sua obra.  Na primeira lição do Seminário 23, a propósito de Joyce, ele fala da homogeneidade do imaginário com o real. Na última lição do Seminário 25, conforme podemos ler em El ultimíssimo Lacan, destaca-se a hiância entre eles. A hiância dificulta o neurótico imaginar o real, diante dela há inibição para imaginar e isso faz o neurótico girar em círculos. Nesse giro sem fim, o real escapa.

 

 

O sinthoma do falasser e  L´une bévue

Miller (2014), em seu Curso, assinala a presença de um retorno realizado por Lacan em seus dois últimos seminários, embora de forma distinta daquele que ocorreu no início do seu ensino. No tempo conhecido como retorno a Freud, Lacan recorreu às primeiras obras freudianas sobre o inconsciente: A interpretação dos sonhos, Psicopatologia da vida cotidiana e Os chistes e sua relação com o inconsciente. Por meio delas, ele pôde propor a base simbólica do inconsciente e a função do significante. Miller destaca que no Seminário 5, As formações do inconsciente, e no Seminário 11, Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise, os atos falhos, os chistes, os sonhos, ou seja, as formações do inconsciente, eram definidos como tropeços da ordem simbólica. Em seus dois últimos Seminários, o 24 e o 25, segundo Miller (2014), Lacan busca isolar a unidade constitutiva do inconsciente apartada da elucubração simbólica. Trata-se, assim, não do inconsciente estruturado como uma linguagem, como ele propôs em seu retorno a Freud, mas do inconsciente L´une bévue. No lugar da unidade significante,  L´une bévue.

Em seu texto, “O inconsciente e o corpo falante”, Miller observa haver, já antes do último ensino de Lacan, um movimento de ir mais além do inconsciente freudiano. Ele nos remete ao escrito “Televisão”, quando interpela Lacan sobre a esquisitice desse termo. Para Miller, essa palavra – inconsciente – não acompanhava o que Lacan havia desenvolvido em sua doutrina. Naquela ocasião, Lacan recusou a crítica de Miller, respondendo-lhe: “Freud não encontrou uma melhor e não há porque voltar a isso”. De acordo com Miller, Lacan admitiu que o inconsciente não era uma palavra adequada, mas resistiu em mudá-la. Todavia, dois anos depois, no escrito “Joyce, o sintoma”, Lacan voltou atrás e propôs o neologismo falasser no lugar do inconsciente. Miller assinala que essa substituição indica a mudança da psicanálise no século XXI, ao levar em conta outro simbólico, não mais ordenador, e outro real.

O falasser é o termo proposto por Lacan para substituir o termo inconsciente, ressalta Miller (2016). Trata-se de um neologismo contemporâneo ao sinthoma e ele marca as mudanças presentes no último ensino para abordar o inconsciente. No lugar do sintoma como formação do inconsciente, encontramos o sinthoma do falasser. O inconsciente estruturado como uma linguagem concebe o sintoma como uma metáfora que produz sentido na remissão de um significante a outro. O sinthoma do falasser é um acontecimento de corpo, uma emergência de gozo, não de sentido.

Como já abordado, no Seminário 23, O Sinthoma, encontramos a equivalência do imaginário ao corpo. Miller (2014) considera o ultimíssimo ensino uma continuidade do anterior, mas com uma nova topologia, que ele chama de visual. Ele ressalta que Lacan sempre se valeu de visuais na mostração da psicanálise: desenhos no quadro, esquemas, matemas, grafos e topologia. No Seminário 23, o nó borromeano prevaleceu. Porém, nos seus dois últimos Seminários, ele modificou o visual, ele não recorreu ao nó, mas ao toro, figura que se assemelha à câmera de ar. Nesse recurso ao toro não teríamos, a meu ver, um abandono do nó borromeano, mas a abertura a outro modo de abordagem do real, do simbólico e do imaginário. Miller afirma que essa escolha se deve ao acesso privilegiado ao real propiciado pelo toro. Lacan generalizou o toro a tal ponto que Miller (2014) considerou nomear uma das lições do Seminário 24 “O universo tórico” e, desse Seminário, Lacan extraiu a tese da estrutura tórica do homem.

Miller recorre ao poema “Os homens ocos” de T.S. Eliot para se referir ao homem tórico – um homem oco. Mas ele ressalta que Lacan não privilegiou o buraco no centro do toro, como em outros momentos de seu ensino, mas em seu interior. Em torno desse buraco real, presente no interior do toro, Lacan nos convida a localizar o que chamaríamos do looping neurótico, seu andar em círculos, seu deixar-se emaranhar-se dando voltas e mais voltas, muitas vezes como um modo de se defender do real, de não ultrapassar a hiância entre o real e o imaginário.

Miller (2014) também enfatiza que no Seminário 25, Momento de concluir, diante do silêncio do real e da desconfiança no simbólico que sempre mente, fica o recurso ao imaginário, ao corpo. O corpo é tomado como o tecido no qual a análise se desenvolve. Lacan chega a afirmar que a análise é anulada se orientada pelo simbólico e estaríamos fazendo abstração, caso tomássemos essa direção. A orientação de uma análise se dá em direção ao real e, como ressalta-nos o ultimíssimo Lacan, em uma análise, trata-se de ultrapassar a hiância entre imaginário e real. Perante o silêncio do real, temos o recurso de imaginá-lo, apontar o dedo para a unidade elementar que não é mais o significante, mas L´une bévue.

Lacan propôs L´une bévue, em seu ultimíssimo ensino, em decorrência do sinthoma. Ele concebeu a neurose como associada ao âmbito social, segundo observa Miller (2014), pois se trata de uma estrutura formada a partir do inconsciente como discurso do Outro. Com o sinthoma, Lacan buscou localizar a singularidade, o Um, e ele o propôs como um recurso para cada um amarrar os registros real, simbólico e imaginário independentemente da estrutura, neurótica ou psicótica.  Nos tempos de declínio do Outro, quando se apresenta a dificuldade de o inconsciente se manter como um discurso no qual se crê, Lacan inventa um significante novo, L´une bévue. Esse significante é, mais propriamente dizendo, uma imagem à qual o neurótico recorre quando o simbólico é insuficiente para abordar o real. É preciso considerar que, mesmo desconfiando do inconsciente freudiano, Lacan inventa um termo que ressoa como ele, e isso é decisivo. Com L´une bévue, Unbewusst, de um modo diferente do freudiano, o inconsciente continua existindo, corroborando, de forma inédita, a continuidade da existência das neuroses

 

Referências:

LACAN, J. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise. Versão brasileira de M.D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. 2ª. ed. (Trabalho original proferido em 1964).

LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985, 2ª. ed. (Trabalho original proferido em 1972-1973).

LACAN, J. O Seminário, Livro 23: O sinthoma. Tradução de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Trabalho original proferido em 1975/1976).

LACAN, J. Le Séminaire, Livre 24: L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre. Lições publicadas na revista: Ornicar? Paris, n. 12-13 (1977), n. 17-18 (1979). (Trabalho original proferido em 1976-1977).

MILLER, J-A. Comentário del seminario inexistente. Buenos Aires: Manantial, 1992.

MILLER, J-A. A Conversação. In: Os casos raros, inclassificáveis da Clínica Psicanalítica. A Conversação de Arcachon. São Paulo: Biblioteca Freudiana Brasileira, 1998. p. 103.

MILLER, J-A. El Otro que no existe y sus comités de ética. Seminario en colaboración com Éric Laurent. Buenos Aires: Paidós. 2005.

MILLER, J-A. Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller: El ultimíssimo Lacan. Buenos Aires: Paidós. 2014.

MILLER, J.-A. O inconsciente e o corpo falante. In: Scilicet: O Corpo Falante – Sobre o inconsciente no século XXI. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2016, p.19-32.

SANTIAGO, J. O imaginário na clínica do sinthoma. Trabalho apresentado no Seminário de Orientação lacaniana da EBP-MG em 21/03/24 e disponível no site desta 27ª Jornada da EBP-MG em:

 

[1] Além de elaborações pessoais, a redação deste Argumento foi realizada a partir de discussões periódicas com Bernardo Micherif, também coordenador da 27ª Jornada da EBP-MG, e contou com a revisão de Sérgio Laia, diretor da EBP-MG.


Tabela

1º lote

de 09/05 a 16/06

2º lote

de 17/06 a 15/09

3º lote

A partir de 16/09

Estudantes de graduação

R$ 170

+ R$ 17 (Taxa Sympla)

R$ 220

+ R$ 22 (Taxa Sympla)

R$ 270

+ R$ 27 (Taxa Sympla)

Alunos do IPSM-MG, pós-graduação e servidores da Rede Pública

R$ 340

+ R$ 34 (Taxa Sympla)

R$ 390

+ R$ 39 (Taxa Sympla)

R$ 440

+ R$ 44 (Taxa Sympla)

Membros da EBP e profissionais

R$ 440

+ R$ 44 (Taxa Sympla)

R$ 490

+ R$ 49 (Taxa Sympla)

R$ 540

+ R$ 54 (Taxa Sympla)


A Escolha da Neurose e a Escolha de uma Análise

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Psicanalista
Analista Membro da Escola (AME)
pela Escola Brasileira de Psicanálise (EBP)
e Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
Diretor Geral da Escola Brasileira de
Psicanálise – Seção MG (EBP-MG)
e-mail: laia.bhe@terra.com.br

Freud (1913/2010, p. 325) abordou a “escolha da neurose” como um “problema” que convocaria a psicanálise a responder “por que um indivíduo adoece de uma neurose”, por que esta última se apresentaria a alguém como uma escolha. Aproximo essa referência à escolha e ao que Lacan (1946/1966, p. 177), bem mais tarde, chamará de “insondável decisão do ser”, aquela em que cada um “compreende ou desconhece sua liberação, nessa armadilha do destino que o engana quanto a uma liberdade que de modo algum conquistou”, isto é “a lei de nosso devir, tal como a exprime a fórmula antiga: Genoi, oíos essí [Que te tornes tal qual és]**”.

Certamente, essa escolha não é uma decisão consciente e, nesse contexto, vale lembrar que essa “fórmula”, Que te tornes tal qual és, é de Píndaro e foi retomada por Nietzsche (1888/1995, p. 48) como “uma oposição à mais conhecida frase grega inscrita no frontão do templo de Apolo em Delfos: “Conhece-te a ti mesmo”.[1] Pautando-se por essa oposição, Nietzsche (1888/1995, p. 48) – além de soar-me lacaniano ao definir a célebre recomendação de conhecer-se a si mesmo como “mal entender-se” – não concebe a “fórmula” Que te tornes tal qual és*** como um processo de conscientização, permitindo-me não assimilar a escolha da neurose a uma decisão consciente e concebê-la como uma das vertentes tomadas pela “insondável decisão do ser”. Sauvignac (2023, p. 12) explicita que a máxima de Píndaro se encontra nas Odes chamadas de Píticas, dedicadas aos vencedores dos concursos pan-helênicos de Delfos, onde se encontrava o santuário de Pytho, em honra de Apolo e, portanto, do mesmo local dedicado a Apolo, derivou-se tanto a “fórmula” que Lacan e Nietzsche valorizam, quanto aquela, mais conhecida e citada, contra a qual Nietzsche se coloca. Nós, psicanalistas da orientação lacaniana, podemos ler tal oposição como uma sensibilidade de Nietzsche (1888/1995, p. 48) à opacidade do gozo do sintoma: “que alguém se torne o que é pressupõe que não suspeite sequer remotamente o que é”. Ao longo de uma análise, eu diria que essa ausência de suspeição quanto a quem se é vai ser abalada e poder-se-á passar a saber do sintoma com o qual uma parceria é mantida, que acompanha cada um ao longo da existência, mas sem que daí se deslinde qualquer progresso em termos de um conhecimento (inclusive à la frontão do templo de Apolo) de si mesmo.

 

Um “problema mais específico” e a escolha entre loucura e debilidade mental

Freud (1913/2010, p. 325) também ressalta que a resposta ao “problema” de como alguém se torna neurótico seria alcançada apenas a partir da resolução de um “problema mais específico” de se saber por que há escolha de uma neurose, e não de outra. Assim, seria preciso descobrir, primeiro, como se daria a escolha por um tipo de neurose para que, a partir daí, o padecimento da neurose se esclarecesse. Ao intitular seu texto “A predisposição à neurose obsessiva”, dedicando-o em grande parte a essa neurose, e, ao final, concluindo que “seria prematuro iniciar… a discussão dos problemas da predisposição histérica”, Freud (1913/2010, p. 325 e 337) pode nos levar a concluir que o “problema mais específico” seria o da escolha entre a histeria e a neurose obsessiva. No entanto, a concepção freudiana das psiconeuroses não corresponde ponto a ponto ao que, especialmente a partir da psicanálise lacaniana, diferenciando-as sobretudo das “psicoses”, concebemos como “neuroses”, porque, para Freud (1913/2010, p. 326), “as principais formas das psiconeuroses” seriam “histeria, neurose obsessiva, paranoia, dementia praecox”. Ora, ao listar essas duas últimas (que chamamos de psicoses) junto com as duas primeiras (para nós, neuroses), Freud – mesmo sem nem sempre ter se valido da diferenciação diagnóstico-estrutural efetivada pela clínica lacaniana – me permite também aproximar o “problema” da “escolha da neurose” e o que Lacan (1976-1977/1977-1979, p. 9),[2] em um de seus últimos Seminários, formulou nos seguintes termos: “entre loucura e debilidade mental, nós temos apenas a escolha”.

Por algum tempo, tendi a conceber essa escolha como aquela pela qual um sujeito se decidiria, de forma exclusiva, pela psicose (especificação do que é mais amplamente chamado de “loucura”) ou pela neurose (que, por suas restrições ao saber, eu então aproximava da noção lacaniana de “debilidade mental”). No entanto, acabei por verificar que as concepções lacanianas de loucura e de debilidade mental não correspondem respectiva e exclusivamente às psicoses e às neuroses. Assim, é pertinente afirmar que tanto neuróticos, quanto psicóticos, podem ser loucos e assolados pela debilidade mental, mas não da mesma forma, e cada um a seu modo.

Ao longo dos últimos dois anos, as Escolas reunidas pela Associação Mundial de Psicanálise (AMP) puderam trabalhar com afinco o aforismo lacaniano que serviu de título ao nosso último Congresso – “Todo mundo é louco” –, e nos foi possível esclarecer como cada um, em sua particularidade e independentemente da estrutura clínica que lhe concerne, é afetado pela “loucura”, na medida em que fala e crê no que não existe e, portanto, delira. Nesse contexto, muitos anos antes desse Congresso, Miller (1988, p. 192 e 193) já elucidava: “o delírio é universal porque os homens falam”, “porque há linguagem para eles”, de modo que “o significante”,  por sua “função de irrealização”, de não se associar propriamente a um referente, a uma coisa, faz o ato mesmo de falar tomar toda uma dimensão delirante. Nas psicoses, essa irrealização promovida pelo significante o atinge, fazendo as próprias palavras se apresentarem literalmente como coisas para aqueles que delas padecem e, nas neuroses, tal irrealização, como já indicava o primeiro Lacan (1953/1966, p. 319), faz com que “o símbolo se manifeste de início como assassinato da coisa”, enredando-as na trama significante do discurso do Outro.

Freud (1924/2016), alguns anos depois de seu texto sobre a “escolha da neurose” e já tendo formulado as instâncias nomeadas como Isso e Supereu, ou seja, quando pôde localizar as perturbações do Eu não apenas pelas diferenças entre os sistemas Consciente e Inconsciente, estabeleceu também uma diferenciação entre neuroses e psicoses que, a meu ver, é importante para o que procuro abordar aqui como a escolha da neurose. Nas neuroses, ao “não aceitar nem querer conduzir para a descarga motora uma moção pulsional poderosa do Isso ou lhe barrar o acesso ao objeto ao qual ela visa”, a defesa se dá pelo recalcamento e “o recalcado luta contra esse destino, cria, para si próprio – por caminhos sobre o qual o Eu não tem nenhum poder –, um substituto que se impõe ao Eu pela via do compromisso [Kompromisses]: o sintoma” (FREUD, 1924/2016, p. 272). Ao não ter qualquer poder quanto aos caminhos que, no entanto, segue, o neurótico, por sua própria conta, só pode mesmo, como ressaltava Nietzsche a propósito do apolíneo “conhece-te a ti mesmo”, mal entender-se, fracassar em saber e em tornar-se tal qual é, mesmo que o tempo todo, como é bem comum hoje em dia, um neurótico creia na importância de ser ele mesmo e de ser quem ele diz ser – essa crença é um do modos pelos quais podemos discernir a debilidade mental como escolha da neurose.

A dimensão débil da neurose me parece também passível de ser localizada quando Freud (1924/2016, p. 272) ressalta que o próprio sintoma, mesmo em sua função de estabelecer um compromisso, uma espécie de pacto para o neurótico defender-se das pulsões e do objeto em torno do qual a satisfação pulsional se dá, continua lhe sendo um “intruso” contra o qual, assolado pelo Supereu, o neurótico “prossegue na luta…, tal como o fez com a moção pulsional original” que lhe sobrevém, não menos incessantemente, do Isso. Por sua vez, nas psicoses, perante o que não tem como realizar-se, “o Eu recria autonomamente para si um novo mundo exterior e interior”, construindo esse “novo mundo… de acordo com as moções de desejo do Isso” (FREUD, 1924/2016, p. 273). Essa recriação psicótica de um mundo é ainda aproximada do que acontece, para todos, e não apenas para os psicóticos, nos sonhos, permitindo a Freud (1924/2016, p. 273) demarcar “o estreito parentesco” entre a psicose e o “sonho normal”, mas não sem fazer-nos a seguinte ressalva: “a condição do sonho é o estado de sono” – ou seja, os neuróticos dormem enquanto os psicóticos se apresentam, senão despertos, certamente em estado de sonambulismo, isto é, capazes de passarem à via do ato mesmo quando parecem adormecidos quanto à chamada “realidade”. A debilidade mental, em sua versão da escolha da neurose, tem a ver, portanto, com o sono que atravessa a existência dos neuróticos – sono que uma análise visa perturbar sem que, devido à pregnância da debilidade mental nas neuroses, jamais o dissipe completamente.

Ao conceber a debilidade mental  como “a impossibilidade de manter um discurso contra o qual não há objeção”, Lacan (1976-1977/1977-1979, p 14)[3] também permite-nos localizá-la tanto nos neuróticos, quanto nos psicóticos. Mas é bem diferente se, por uma decisão insondável do ser, a recusa de sofrer alguma objeção advenha, como acontece nas psicoses, da impossibilidade de manutenção de um discurso que lhes inexiste enquanto tal, isto é, não há propriamente um registro subjetivo do que lhes faria laço social e permitiria uma articulação transmissível das palavras e dos corpos ou se, por outra forma de a decisão insondável do ser apresentar-se, a impossibilidade de manter um discurso sem objeções for tributária de um esforço incessante, nos neuróticos, para se crer na consistência do discurso do Outro e, assim, fazê-lo perseverar em sua existência e proteger-se do sintoma como esse estranho que lhes é, ao mesmo tempo, um parceiro ao longo de suas vidas.

Procurando esclarecer um pouco mais a formulação de Lacan (1946/1966, p. 177) sobre a insondável decisão do ser e me valendo dos  seus próprios termos, eu diria que, com relação à “armadilha do destino” (e tomo o destino como um nome que os antigos davam ao Outro), o psicótico é aquele que “compreende… sua liberação” em relação a essa armadilha-destino, não admite  sofrer objeções quanto a essa liberdade, mesmo que ela o faça padecer da inexistência de um lugar para si no Outro; por sua vez, o neurótico, em sua escolha, “desconhece sua liberação” e se deixa alienar-se no discurso do Outro, caindo nessa armadilha na qual ele crer compor toda sua existência enquanto, na verdade, essa composição só acontece de modo parcial.

É ainda possível esclarecer um pouco mais como a debilidade, de forma diferente, afeta tanto a escolha da neurose, quanto a escolha da psicose, na medida em que Lacan (1946/1966, p. 177) afirma: a “armadilha do destino”, frente à qual o ser toma sua “decisão insondável”, também “o engana quanto a uma liberdade que ele de modo algum conquistou”. Nesse engano, leio a presença da debilidade. Assim, eu diria que um psicótico é enganado porque sua liberdade, embora alardeada por sua certeza delirante, não é uma conquista sua, mas consequência de sua condição de ser largado, de ter sido abandonado quanto à trama e, por que não dizer, à tramoia do Outro que, particularmente nas querelâncias, é alvo de denúncias e demandas de reparação infindáveis. Por sua vez, de modo mais contundente, o engano da escolha do neurótico, sua debilidade, é crer que sua liberdade não é conquistada devido à consistência que ele atribui à “armadilha do destino” que o captura, ou porque ela parece lhe advir, não sem engano, apenas como um resultado de seu protesto, de sua oposição a deixar-se cativar enquanto, no real de sua existência, palavras e imagens não deixam de fasciná-lo e impedi-lo de efetivamente conquistar, como sua, a liberdade.

 

A escolha de uma análise

Um analista, hoje, ao operar com as neuroses, vai se haver senão com a descrença, certamente com o tédio perante a possibilidade de um sentido advir do inconsciente, como retorno do recalcado, para elucidar, tal qual nos tempos de Freud, o que é esse estranho que se apresenta como parceiro na própria forma do sintoma perturbar neuroticamente a vida. Por isso, “no lugar do recalcado”, a análise passa a ser desafiada pela “verdade mentirosa do que Freud reconheceu como o recalque originário” (MILLER, 2016, p. 32). Essa forma primeira do recalque, mais do que com o sentido ou com a verdade inconscientes, tem a ver com a fixação (FREUD, 1915/2004, p. 179) pela qual um representante psíquico da pulsão se mantém inalterado, sem acesso, mas com uma força atratora concernente ao material recalcado, na medida em que a pulsão “permanecerá a ele enlaçada”. Logo, talvez não seja excessivo comparar o recalque originário à noção física de buraco negro que, por conter uma força de gravidade tão intensa, faz com que nada tenha energia suficiente para dele escapar e, portanto, torna-se localizável apenas pela ausência de retorno.

Assim, não é incomum, hoje, sermos procurados como analistas menos por uma constatação de que há algo que escapa ao saber dos que nos demandam tratamento, menos ainda pela presença inconsciente de suas lembranças infantis, e muito mais pelo incômodo diante do que lhes fixam em certos trajetos e satisfações dos quais não conseguem liberar-se. Não é que essas lembranças efetivamente inexistam ou não possam aparecer ao longo de uma análise. A dimensão débil da neurose em nossos dias se apresenta, sobretudo, como a constatação de uma fixação da qual os analisantes parecem não encontrar alguma saída e, menos ainda, uma liberdade. Afinal, como também já destacava Freud (1912/2021, p. 609), pela “fixação”, como “precursora e a condição de todo ‘recalcamento’, uma pulsão ou uma parte constitutiva de uma pulsão não acompanha o desenvolvimento normalmente previsto, permanecendo, em consequência dessa inibição do desenvolvimento, em um estágio mais infantil” que, por esse processo inibitório e fixado, me parece possível de ser qualificado também como débil.

Derivadas da fixação, essa debilidade, tanto quanto a loucura, me parecem ainda ressoar na concepção que Lacan (1976-1977/1977-1979, p. 7, 8 e 9)[4] faz do inconsciente como o que, “em suma, fala-se… completamente sozinho [tout seul]… porque não se diz jamais senão uma única e mesma coisa”, e, na medida em “nós nos falamos completamente sozinhos, até que surja o que chamamos de eu, embora não seja garantido que ele não possa, estritamente falando, delirar”.  Porém, Lacan (1976-1977/1977-1979, p. 7)[5] estabelece uma ressalva a esse solilóquio débil e delirante: é diferente quando, por uma espécie de furo nesse trajeto fechado, há abertura para se “dialogar com um psicanalista”. Afinal, um analista – diferente de quem se defende da impossibilidade de manter um discurso sem objeção e de quem se esforça para apresentar-se como um não-tolo – se vale de “um discurso no qual os semblantes obstringem um real, um real no qual se crê sem a ele aderir, um real que não tem sentido, indiferente ao sentido e que só pode ser aquilo que ele é” (MILLER, 2016, p. 31).

O discurso analítico é capaz de impressar, apertar, fortemente tal real sem a ele, pela debilidade ou pela loucura, aderir, porque a psicanálise “é o que faz de verdade [fait vrai]”, operando com os semblantes, ou seja, com essa nova forma de apresentação lacaniana do imaginário, por “um golpe [coup] de sentido” (LACAN, 1976-1977/1977-1979, p. 18).[6] Nesse termo golpe destaco, no discurso analítico, tanto um uso do sentido de forma fugaz e instantânea, quanto  uma supressão mesma do sentido, ou seja, sua anulação, e, por isso, Lacan (1976-77/1977-1979, p. 18)[7] vai destacar homofonicamente o semblant com que um analista opera em sua abordagem do real como sens-blant, ou seja, sentido-branco (sens-blanc), ou, para ressoar melhor em português, como dar branco no sentido.

A escolha de uma análise é uma escolha diversa daquela da neurose porque, nesse novo trajeto que se abre para o estado de satisfação das pulsões, um analista vai “dirigir um delírio” de maneira que a debilidade desse delírio “ceda à tapeação do real” (MILLER, 2016, p. 32). Com uma análise, a escolha de um neurótico poderá, enfim, conquistar a liberdade que ressoa na máxima poética de Píndaro, ou seja, frente à armadilha do destino, exaurindo a trama-tramoia do discurso Outro de modo a reduzi-lo “a seu real e liberá-lo do sentido” (MILLER, 2014, p. 31), promovendo um branco no sentido, conquista-se a liberdade, e não sem a presença ao mesmo tempo intrusa e parceira do sintoma, de tornar-se tal qual se é.

 

Referências:

BRIAN, M. Pindare et Parménide, poètes et penseurs: jeux des métaphores et effets pragmatiques. Dialogues d’histoire ancienne, v. 46, n. 2, 220, p. 75-104. Disponível em:

https://www.persee.fr/doc/dha_0755-7256_2020_num_46_2_4976

FREUD, S. O recalque. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. I, 2004, p. 175-193. (Trabalho original publicado em 1915).

FREUD, S. A predisposição à neurose obsessiva. Contribuição ao problema da escolha da neurose. In: Obras Completas: Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia (“o caso Schreber”), artigos sobre técnica e outros textos. São Paulo: Companhia das Letras, Vol. 10, 2010, p. 325-337. (Trabalho original publicado em 1913).

FREUD, S. Neurose e psicose. In: Neurose, psicose, perversão. Belo Horizonte: Autêntica, 2016, p. 271-278 (Trabalho original publicado em 1924).

FREUD, S. Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia (dementia paranoides) descrito com base em dados biográficos (Caso Schreber). In: Histórias clínicas: cinco casos paradigmáticos da clínica psicanalítica. Belo Horizonte: Autêntica, 2021, p. 539-630. (Trabalho original publicado em 1912).

LACAN, J. Propos sur la causalité psychique. In: Écrits. Paris: Seuil, 1966, p. 151-193 (Trabalho originalmente proferido em 1946).LACAN, J. Le seminaire. Livre XXIV: L’insu qui se sait d’une-bévue s’aille à mourre. Ornicar?, Paris, n. 12-13, 1977, p. 7-23; n. 14, p. 4-9, 1978; n. 17-18, 1979, p. 7-23. (Trabalho original proferido em 1976-1977).

MILLER, J. -A. Clínica irônica. In: Matemas I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988, p. 190-200.

MILLER, J.-A. O real no século XXI. Apresentação do tema do IX Congresso da AMP. In: MACHADO, O.; RIBEIRO, V. A. (Org.). Scilicet: o real no século XXI. Belo Horizonte: Scriptum/Escola Brasileira de Psicanálise, 2014, p. 21-32.

MILLER, J.-A. O inconsciente e o corpo falante. In: Scilicet: O corpo falante – Sobre o inconsciente no século XXI. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2016, p. 19-32.

NIETZSCHE, F. Ecce homo. Como alguém se torna o que é. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. (Trabalho originalmente redigido em 1888).
PINDAR. Olympian odes. Pythian odes. Edited and translated by William H. Race. Cambrigde and London: Havard Unversity Press, 1997, p. 119-241 (Loeb Classic Library).

PÍNDARO. Odas y fragmentos. Introduciones, traducción y notas de Alfonso Ortega. Madrid: Gredos, 1984, p. 141-153.

PINDARE. Oeuvres complètes. Paris: Belles Lettres, 2023.

SAUVIGNAC, J.-P. Préface. In: PINDARE. Oeuvres complètes. Paris: Belles Lettres, 2023, p. 9-40.

Notas:

** No escrito de Lacan, a “fórmula antiga” é do poeta Píndaro, extraída do verso 72 da 2ª Pítica e aparece citada em grego. Entre colchetes, agreguei-lhe uma tradução possível, graças a uma correspondência por e-mail realizada com Teodoro Rennó Assunção que, como é sempre de seu feitio, não só acolheu meu pedido de esclarecimento, como me ofereceu uma possibilidade de tradução para o português e me passou vários textos que comentam e traduzem tal máxima desse poeta grego. Dentre esses textos, que sem dúvida evidenciam a complexidade e nuances dessa “fórmula antiga”, extraio três outras versões possíveis: Become such as you are (“Torna-te tal como és”, tradução de William H. Race, cf. Pindar, 1997, p. 239); Puisses-toi devenir tel que tu es (“Que possas tornar-te tal como és”, tradução de Brian, 2020, p. 99); !Hazte el que eres!  (“Assume tal qual és”, tradução de Alfonso Ortega, cf. Píndaro, 1984, p. 152). Também encontrei, em uma frase que se estende um pouco mais do que a recortada por Lacan, a seguinte tradução de Sauvignac, na célebre coleção de Les Belles Lettres (Pindare, 2023, p. 137): Sois tel que tu sais être (“Sejas tal qual sabes ser”). Nesta nota, gostaria de deixar registrado, também, minha gratidão ao Teodoro, sempre generoso e preciso.

*** Em Nietzsche (1888), a máxima de Píndaro sofre uma alteração e aparece, inclusive no subtítulo mesmo de seu livro, assim:  como alguém se torna o que é. Brian (2020, p. 96-100), em uma parte de seu texto, comenta o uso que Nietzsche, entre outros autores, faz dessa passagem desse poeta grego.

[1] Em Ecce homo (NIETZSCHE, 1888/1995, p. 48), a máxima apolínea é citada em sua tradução latina: nosce te ipsum.

[2] Lição do dia 11/01/1977.

[3] Lição de 19/04/1977.

[4] Lição de 11/01/1977.

[5] Lição de 10/01/1977.

[6] Lição de 10/05/1977.

[7] Lição de 10/05/1977.

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A mulher-borboleta: o infamiliar provém do imaginário

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Privilegiei a formulação inusitada do último ensino de Lacan (2007, p. 47), segundo a qual “o infamiliar, incontestavelmente, provém do imaginário”[1] e, ao mesmo tempo, visa o real. Trata-se de uma indicação presente em O Seminário, livro 23: o sinthoma, que assume uma importância decisiva para a questão do feminino sob a ótica da presença, nesse fenômeno do infamiliar, daquilo que “não pode ser dito”[2]  do “real que não fala” (MILLER, 2014, p. 235)[3]. É Lacan quem assinala que “o unheimlich permite que surja aquilo que, no mundo, não pode ser dito” e Miller, em seu curso O ultimissimo Lacan (2006-227) diz ser mportante indagar se a formulação de que o real não fala equivale à noção de indizível. O indizível supõe que o real tem o que falar, apenas não o diz.

Jacques-Alain Miller comenta – no Parlement de Montpellier – que a marca da orientação de Lacan no momento de sua última clínica é colocar o imaginário no centro[4]. Isso quer dizer que o imaginário, segundo a perspectiva borremeana, não é tomado de modo isolado e autônomo e, sim, enodado com as outras duas consistências, ao real e ao simbólico. O que interessa a Lacan é o que se designa como a “geometria dos nós”, uma geometria original que estabelece um espaço específico para a ocupação dessas três consistências e produz efeitos, entre os quais, a expulsão do infamiliar para fora do corpo. Destaca-se o modo como ele exprime essa expulsão por intermédio de um exorcismo que, como se sabe, designa um ritual religioso que visa esconjurar o demônio ou outros espíritos malignos. Afinal, por que falar de exorcismo do demoníaco com relação ao infamiliar? No caso do feminino, o infamiliar aproxima-se do demoníaco, pois uma certa configuração das três consistências tende a exorcizá-lo. Em Lacan, a experiência do estranho confirma esse exorcismo à medida que o infamiliar diz respeito a algo que dá forma ao modo de gozo feminino, ou seja, ele faz valer a vertente não-toda fálica de uma mulher (LACAN, 2005a, p. 98)[5], a vertente do mais além do falo concebido como resposta à castração. Em última instância, a inquietante estranheza no feminino aparece em relação com o que, em outras épocas, teve lugar sob o modo de estados de possessão a serem exorcizados[6]. Devem ser expulsos, pois são signos do que está para além do princípio ordenador do falo, algo que, de uma maneira ou de outra, organiza um modo de gozo familiar (LACAN, 2005a, p. 57)[7]. Além do mais, na articulação do imaginário com o corpo, esse estranho surge provocando uma inibição específica, uma paralisação pela angústia, que caracteriza o infamiliar e pode revelar a extimidade do inconsciente (LACAN, 2007, p. 47).

Para tentar elucidar essa formulação fundamental da clínica do infamiliar — segundo a qual a inquietante estranheza provém do imaginário —, é preciso, antes de tudo, esclarecer que há uma relação essencial da inquietante estranheza com o campo escópico, relação esta mediada pelo Outro mas que repercute no corpo falante. Em seguida, valendo-me de um breve fragmento clínico da literatura psicanalítica, procurarei demonstrar que a operação que nos interessa no tocante à clínica do infamiliar é a ultrapassagem do imaginário especular, que, ao tomar o Outro como totalidade, provoca inibições e defesas para o alcance do real em jogo no não-todo fálico próprio do feminino. Evidentemente que me refiro aos passos necessários aos avanços da experiência rumo ao final de análise para o sujeito feminino.

 

A imagem desejável de ser do sujeito no Outro

Lacan se vale dos mais diversos ângulos para aprofundar o exame da noção clínica do infamiliar (Unheimlich) referindo-se sempre como um fenômeno de familiaridade estranha. Antes de tudo, destaca-se, em seu comentário no curso de O Seminário, livro 10: a angústia, a preponderância da pulsão escópica na origem desse fenômeno. Isso vai ao encontro do que Freud apreende, no conto de Hoffmann intitulado “O Homem da Areia”[8], como a alegoria da areia jogada nos olhos das crianças que não querem dormir e que terão, por isso, seus olhos arrancados e levados pelo personagem malvado. Assim, ele relaciona esse fenômeno à angústia de castração, ao passo que Lacan busca isolar a ação do objeto da pulsão escópica no infamiliar. De acordo com esse ponto de vista, o infamiliar é vivenciado a partir de um encontro com o real que a experiência do olhar suscita pelo efeito de captura do desejo que se produz na relação do sujeito com o Outro. O que se destaca na leitura lacaniana é a imagem desejável de ser do sujeito no Outro: o sujeito acredita desejar porque se vê como desejado e não vê que aquilo que o Outro quer é lhe arrancar o olhar (LACAN, 2005b. p. 69) — fórmula que aponta para o valor libidinal do olho. Em termos mais precisos, Lacan afirma que:

 

(…) a cada vez que, subitamente, por algum incidente fomentado pelo Outro, sua imagem no Outro aparece para o sujeito como privada de seu olhar, toda a trama da cadeia da qual o sujeito é cativo na pulsão escópica se desfaz, e é o retorno à angústia mais básica. (Ibid.)

 

O fenômeno do infamiliar implica, portanto, a pulsão escópica e a experiência do corpo enquanto vítima de um logro concernente ao objeto do desejo e sua imagem no Outro. O que retorna como experiência do real que não fala, em que o sujeito tenta abordar o espaço do Outro, é a angústia.

Gostaria de sublinhar a concepção renovada da pulsão escópica que leva Lacan a considerar, por um lado, que “ao olhar se liga sempre um afeto de censura” e, por outro, que “ao olhar do Outro está sempre ligada uma estranheza” (MILLER, 2020, pp. 35-46). Conclui-se, portanto, que o olhar traz consigo e nutre os fenômenos de unheimlichkeit. O infamiliar implica a dimensão real do objeto olhar e decorre da tentativa do sujeito de se delimitar em relação ao Outro.

Esse “delimitar-se” no Outro ganha novos esclarecimentos em O Seminário, livro 20: mais, ainda, quando Lacan introduz o conceito de não-todo e as questões do sem limites e da infinitude como marca do gozo feminino. Evidentemente que a infinitude própria do gozo feminino se distingue do caráter fechado e limitado do gozo fálico. Aquilo que Lacan circunscreve, nesse seminário, como um espaço do gozo sexual, que tem uma estrutura comum para os dois sexos, é trabalhado buscando-se explicitar a maneira particular de cada ser sexuado falhar no encontro com o outro sexo. Deve-se considerar que, entre um sexo e outro, há o falo, mas há também a presença do Outro, não todo, ao qual falta algo S(Ⱥ).

O homem aborda esse espaço com o Um, ou seja, com o gozo fálico e também com o seu ser, gozo do corpo que passa pelo objeto a. A mulher aborda esse espaço com o não-toda e, como Outro, ela encontra uma dificuldade: ela fracassa, porque só encontra o Um. Lacan fala da desnaturalização da alteridade do sexo para a mulher, que só acede ao Outro por intermédio do homem. A tese de Lacan é que o homem serve de conector à mulher para ela aceder ao Outro que ela mesma o é para ele. Essa tese nos foi ilustrada de maneira bastante esclarecedora nos testemunhos de passe de Angelina Harari (2010), como o desnudamento do semblante fálico, em seu caso, o gozo clandestino que a deixava constrangida ao normativo fazendo existir a mulher toda para todohomem. A outra para si mesma, na histeria, consiste em deixar cair a Outra mulher. Porém cabe perguntar se esse “Outro para si mesma” coincide com a experiência do infamiliar. O conector funciona permitindo à histérica sair do solipsismo de si mesma para alcançar a singularidade do gozo feminino, visto que este não é sem relação com um certo consentimento da inquietante estranheza. Em O aturdito, Lacan afirma, ainda, que a mulher só tem um inconsciente no ponto onde ela é vista pelo homem, o que introduz o homem como um conector essencial até para o acesso ao inconsciente.

Há muitas maneiras de se defender desse real, tanto para o homem quanto para a mulher. Cada maneira é singular e constitui a escolha de um infinito particular. Para a mulher, a mascarada fálica, os diversos tipos de frigidez (que Lacan não considera sintoma) e as variadas formas de articulação entre desejo e amor são tipos de defesa simbolicamente comandadas para encobrir o real da não existência da relação sexual. Aquilo que o infamiliar faz aparecer é também um tipo de defesa, porém comandada pelo imaginário, sob a dominação do olhar.

Em seu texto “Diretrizes para um Congresso sobre a sexualidade feminina”, Lacan (1998. p. 741) diz que é possível mobilizar essas modalidades de defesa na transferência. Na análise, pode-se operar um desvelamento do Outro interessado na transferência. Tratar-se-ia de suspender o véu do que, para o sujeito, seria o Outro do amor, ao qual ele teve acesso na transferência, para que ele pudesse perceber a castração no Outro, que é o cerne do inconsciente. A castração no Outro, no inconsciente, é o familiar. Assim, Lacan explica que o infamiliar é o que está no lugar do familiar, servindo de véu para encobri-lo. Isso vai ao encontro com a afinidade que Freud estabelece entre o recalque e o infamiliar: seria “Unheimilich tudo que deveria permanecer secreto, oculto, mas que aparece”[9].

Em O Seminário, livro 23: o sinthoma, quando Lacan propõe uma nova escrita para o inconsciente — a escrita dos nós para o inconsciente real, em que se subtrai qualquer impacto de sentido ou de interpretação —, situa o infamiliar, a “inquietante estranheza, como o que, incontestavelmente, provém do imaginário”. O infamiliar se refere ao imaginário do corpo que a própria estruturação do inconsciente — a geometria dos nós — tem por função exorcizar. A concepção do imaginário borromeano presente nesse momento do ensino de Lacan se apresenta em contraposição ao imaginário especular. O imaginário borromeano é contíguo ao real e ocupa um espaço específico no enodar dos registros com seus efeitos. O imaginário especular é “um um fechado — miragem à qual se apega a referência ao psiquismo invólucro, uma espécie de duplo do organismo onde residiria essa falsa unidade”. Em oposição a esse imaginário autônomo, fechado no eixo a–a’, isolado no circuito da relação do eu ao outro, tem-se o imaginário real, em consonância com o que a experiência do inconsciente introduz “o um da fenda, do traço, da ruptura” (LACAN, 1979. p. 30). Podemos tomar, então, a emergência do fenômeno do infamiliar como o aparecimento, no campo visual, da forma que o imaginário especular incorporou velando o não-todo fálico.

 

O infamiliar ultrapassado, sob transferência

Para ilustrar esse aspecto, recorro a um fragmento de caso da literatura psicanalítica[10] de uma paciente que encontra o infamiliar angustiante na forma de um inseto — não um inseto repulsivo, uma mariposa medonha ou uma vespa que voa para dentro da roupa e pica, mas um borboleta maravilhosa, que gera o fascínio pela imagem.

A analisante, uma mulher, é descrita como alguém que leva a vida com leveza, não se abala com nada, nem mesmo com os fatos dramáticos da vida. Em sua experiência, portanto, não há praticamente nada de infamiliar. Isso reveste igualmente a forma como ela denega a morte e mostra uma certa indiferença em relação ao corpo, independentemente do que venha lhe afetar.

Essa analisante, que é atriz, em um determinado momento de sua vida, aceitou fazer o papel de uma mulher dilacerada cujo marido, um camponês simples, se deixou seduzir por uma jovem de imagem devassa e foi tomado por uma paixão tal, que culminou em sua separação. A filmagem aconteceu no campo. No momento de rodar a cena em que o marido lhe confessa sua fraqueza e sua culpa, ela se distrai completamente, atraída por uma borboleta deslumbrante que pousou perto de onde estava sentada. De repente, ela experimenta uma angústia violenta que a perturba tanto, a ponto de ser preciso interromper a gravação. A borboleta com asas amplamente abertas olhou para ela. A filmagem se transforma em um pesadelo.

Interessa à analista trabalhar esse momento em que uma imagem se destaca como algo de infamiliar, admitindo que esta imagem aponta para o real em jogo nos impasses de sua vida amorosa. A analisante lembra-se, então, das borboletas que via voando de flor em flor no jardim da fazenda da família, onde costumava passar parte de suas férias durante a infância. Ela tinha boas lembranças desse lugar, com exceção de uma aflição suscitada pela presença muda e olhar sinistro do avô inválido. Preferia fugir desse olhar e dessa presença indo brincar na casa dos vizinhos, que tinham um filho de sua idade. Esse vizinho – pai do menino – lhe apresentou os trabalhos no campo, os cuidados com os animais da fazenda e o prazer de rolar no feno. Mas, por trás disso tudo, havia uma lembrança enterrada. O vizinho, que gostava muito dela e frequentemente a levava em seu trator (ela se sentava muitíssimo perto dele e algumas vezes em seu colo), um belo dia, suavemente, mas com firmeza, abriu suas coxas para acariciá-la. Ela experimentou um prazer perturbador e, só depois, teve vergonha. Após ter deixado isso acontecer, ela nunca mais voltou a essa casa e ignorou o vizinho completamente. Alguns anos mais tarde, quando soube que ele morreu afogado em um lago perto da fazenda, foi tomada de pavor e se sentiu terrivelmente culpada. Culpada por tê-lo abandonado, sem um olhar e sem uma palavra.

O surgimento do acontecimento imprevisto promovido pela imagem da borboleta deslumbrante deve ser tomado como a emergência do infamiliar na imobilidade das asas abertas do inseto. Ela, que sempre se “deixava (levar)” nos encontros com o outro sexo, deixava acontecer, sem habitar seu corpo, pôde se dar conta de sua posição de gozo e parar de “borboletar” de um parceiro a outro sem se responsabilizar por isso. Ela terminou uma relação conjugal que sempre a protegeu da sexualidade e decidiu se engajar na via de uma feminilidade que, até então, era recusada.

Podemos nos perguntar: em que o infamiliar, que aparece nesse caso via a imagem da borboleta, desempenha um papel fundamental nessa responsabilização do sujeito por seu modo de gozo?

 

Conclusão

Esse fragmento de caso põe em evidência a postulação de Lacan destacada antes sobre a determinação do olhar em tudo o que alimenta o infamiliar. A presença da pulsão escópica no infamiliar é o que explica a tese de Lacan que esse fenômeno provém do imaginário, porém, do imaginário que se define pelo corpo. O olhar aparece incarnado sob a forma da borboleta e visa o real concernente à satisfação pulsional. A escolha da borboleta — escolha que o inseto faz de pousar ao seu lado — introduz a questão do desejo do Outro, como borboleta, aspirando ser diante dela.

Essa cena que provoca intensa angústia é capturada pelo olho negro da câmera que estava em ação durante a filmagem, que, sem dúvida, fornece um enquadre (simbólico) para o acontecimento do infamiliar, contudo, destaca-se a ausência de palavra: “o real que não fala”, esse real mudo. A angústia atesta a inquietante estranheza que congela e inibe o sujeito, situação que de alguma maneira a filmagem compõe e delimita. Na análise, a imobilidade do inseto e do sujeito afetado remete à presença muda do avô com seu olhar estranho. Na lembrança de infância da paciente, a criança desvia o olhar diante da estranheza do avô e do ato libidinoso do vizinho, evidenciando como o sujeito se encontra imobilizado, em todas essas circunstâncias, sob o domínio do olhar.

A angústia situada pelo sujeito na imobilidade perfeita das asas do inseto também evoca, o seu contrário: o movimento de abrir/fechar das asas reportando-se ao abrir/fechar das pernas, na cena sexual que vem à tona como lembrança. Assim, o infamiliar que aparece na borboleta pela via do imaginário escópico – a borboleta que olha, com suas asas abertas e imóveis – facilita o acesso ao mais além da imagem deslumbrante, desnudando e fazendo vacilar o semblante fálico, e, nesse sentido, evidenciando o real do não-todo. A borboleta é o signo que torna possível a esse sujeito se situar em relação aos impasses em sua vida amorosa. É nessa articulação que o imaginário do corpo constitui a chave de acesso à lembrança encobridora e ao inconsciente real: de um lado, abre acesso ao traumatismo do gozo; de outro, abre acesso sobre o significante borboleta, que, em última instância, é aquilo que o sujeito se faz para o Outro.

O infamiliar, portanto, como um efeito do imaginário, pode permitir ao sujeito feminino, em análise, ir além dos limites quase intransponíveis do semblante fálico. Esse fenômeno constitui, assim, uma das vias de acesso ao real inerente ao  não-todo fálico e favorece o tratamento que uma mulher pode dar ao ilimitado do gozo. Esse ilimitado do gozo que age sintomaticamente até que uma espécie de solução possa ser encontrada. No caso do final de análise, é preciso uma abertura do sujeito para tratar o infamiliar, consentindo com o real que advém de um encontro com a alteridade pura do feminino. É em função desta alteridade do feminino que o final de análise toma como referência esse unheimlich do feminino, podendo consentir com ele e, portanto, torna-se Outro para si mesma. Enfim, ser Outro para si mesma, que o não-todo implica, é uma das maneiras pelas quais, no final, o sujeito desvela a presença perturbadora e efêmera do infamiliar.

 

Referências

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LACAN, Jacques. “Diretrizes para um Congresso sobre a sexualidade feminina” [1958]. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

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MILLER, Jacques-Alain. “À primeira vista, a estranheza”. Opção Lacaniana. São Paulo: Eolia, nº 82, abril de 2020.

MILLER, Jacques-Alain. [2006-2007] El ultimíssimo Lacan. Buenos Aires: Paidós, 2014.

[1] Cabe assinalar que, na versão brasileira dessa obra, encontra-se, na página citada, não o termo “infamiliar”, mas “inquietante estranheza”, opção dos tradutores. No presente artigo, utilizo ambos, privilegiando “infamiliar”, em consonância com a última tradução brasileira publicada pela editora Autêntica.

[2] Lacan assinala que o unheimlich permite que surja aquilo que, no mundo, não pode ser dito” (grifos do autor).

[3] É importante indagar se a formulação de que o real não fala equivale a noção do indizível. O indizível supõe admitir que o real tem o que falar, apenas não o diz.

[4] Conversação clínica em torno do Seminário 23. Parlement de l’UFORCA em Montpellier, ocorrido nos dias 21 e 22 de maio de 2011. Paris: 2020.

[5] LACAN, J. O seminário, livro 10: a angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. p. 98. O status da letra a: se situa “acima do perfil do vaso que simboliza o continente narcísico da libido. Este pode ser relacionado com a imagem do próprio corpo, i'(a),  por intermédio do espelho do Outro, A.”

[6] Cf:  CERTEAU, M. 2005.

[7] LACAN, J. O seminário, livro 10: a angústia, Op, Cit. Lacan designa o familiar – Hein – como o menos-phi e precisa que a angústia está ligada a tudo que pode aparecer no lugar (-φ).

[8] Comentado por Freud em “O infamiliar”.

[9] Freud, valendo-se, como indica, da definição do filósofo alemão Schelling. Cf.: FREUD, S. “O Estranho” [1919].

[10] Esse caso foi objeto de discussão durante a conversação clínica da Union pour la Formation et Psychanalyse (UFORCA), durante o evento Parlement de l’UFORCA, em Montpellier (21 e 22/05/2011). A analista é membro da Associação Mundial de Psicanálise e optou, por discrição, não o publicar na íntegra. Contudo, autorizou sua apresentação no Brasil.

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