Bibliografia
Psicanálise em imersão
por Maria Amélia Tostes
Acontecimento de corpo x acontecimento de desejo
“Quando Lacan diz que o sintoma é um acontecimento de corpo, ele o diz exatamente – com a seguinte frase, em sua escrita ‘Joyce, o sintoma’ – Deixemos o sintoma para o que ele é: um acontecimento de corpo. Esse rebaixamento do sintoma ao acontecimento de corpo, na minha opinião, significa que não se trata de uma formação do inconsciente e que ele se relaciona, não com o sujeito do significante, mas com o corpo concebido como patrimônio do homem, um bem do corpo investido de libido, do corpo como um lugar de gozo – e é por isso que Lacan pode dizer que ele esvazia o ser”.
Assim é que Jacques-Alain Miller aborda, nesse texto, o acontecimento de corpo que ele traduz por “acontecimento de gozo”, em contraposição ao “acontecimento de desejo”. Enquanto o “acontecimento de gozo” estaria fixado no corpo “de uma vez por todas” na qualidade de um “sintoma”, o “acontecimento de desejo” seria o que se pode chamar de “revelações”, uma vez que se trata de “acontecimentos de verdade, em que estamos acostumados a distinguir um antes e um depois da sua emergência”.
O sentido de desejo é diferente do sentido de gozo. Quando se está sobre a égide do desejo, há comunicação, ou seja, o significante que falta ao analisando pode ser trazido pelo analista na interpretação. “Se há comunicação quando há um sentido de desejo, há satisfação quando há um sentido de gozo”. No desejo, estamos no reino da linguagem; no gozo, no território de lalíngua.
Para Miller, resta saber “o que, do gozo, pode ser deslocado em uma psicanálise” e, portanto, quais são os acontecimentos de gozo em que a “fala líquida” – aquela da livre associação proposta por Freud que não está a serviço da comunicação, pelo contrário, está “livre dela” – mostra ser capaz de deslocar o gozo. A esse respeito, Jacques-Alain Miller lembra que há uma distância, um hiato que separa a clínica-estrutura da clínica-acontecimento. “Não podemos deduzir o acontecimento a partir da estrutura”, sob pena de se “misturar o lugar da interpretação”, a qual, embora, na psicanálise, ela jogue geralmente “em relação à verdade”, esse “não é o caso em toda a análise”. E, com Miller, podemos pensar que a interpretação possa ser avaliada “pelo acontecimento de gozo de que ela é capaz de eventualmente engendrar”. Ou seja, “a psicanálise joga com o que produz gozo”.
As formações do inconsciente e do sentido do desejo são “o que praticamos como psicanálise do sujeito” apegado à linguagem e ao inconsciente estruturado como linguagem. Mas, “há um outro curso de análise “em que estamos lidando no nível de lalíngua e dos afetos singulares que ele gera no corpo” e que a solução da análise, ao invés de ser a “resolução do enigma do desejo” é, antes de tudo, a “de uma nova satisfação”. Os dois níveis podem se articular e se pode introduzir, com o último ensino de Lacan, “uma tripartição da experiência analítica”, começando com “a verdade e o desejo do lado da estrutura” e se concluindo “sob a satisfação”.
Miller aponta que Lacan insistiu na noção de que “o saber inconsciente trabalha para o gozo”, mas que, hoje, diante de uma psicanálise líquida e, portanto, cada vez menos estrutural e menos restrita às formações do inconsciente, há que se relativizar os conceitos de cifração e decifração em favor do corte – “do corte cirúrgico”. O corte, assim, seria o “que pode ser realizado no nível do acontecimento de gozo” e a sessão curta não estaria mais orientada pelas formações do inconsciente, “mas, pelos acontecimentos de gozo”.
Lalíngua arruína a psicanálise baseada na estrutura da linguagem
O status de lalíngua chega à psicanálise lacaniana para abalar de vez as suas estruturas como uma “psicanálise sólida”, baseada na linguística saussuriana e, portanto, na linguagem. Toda “fala é liquida”, especialmente quando essa liquidez é o que se privilegia em um tratamento analítico por meio da associação livre. Mas, até o conceito de lalíngua ser formulado por Jacques Lacan, 20 anos depois de seu ensino, pode-se dizer que essa fluidez visava a um padrão e estava imersa em uma estrutura de linguagem regida por significantes e significados.
Lalíngua vem “arruinar a psicanálise sólida”, arremata Miller. Com lalíngua, “a fala é da ordem da secreção, de um fluido linguístico” e a linguística de Saussure não faz outra coisa que buscar captar a fala líquida, afastando-a de sua vocação linguageira, distanciando-a de lalíngua. E mais: Miller afirma que, para além de lalíngua, existe também um hiato necessário entre esta e a linguagem. A linguagem – “ela não existe”. Sua existência só emerge na medida em que tentamos descobrir alguma evidência de lalíngua. E, com isso, a estrutura de linguagem não passa de uma elucubração de saber sobre lalíngua. Está aí o ponto, nos diz Miller, a partir do qual “a teoria da psicanálise se desprende de sua herança”, repercutindo diretamente sobre a prática do analista e da experiência de análise, especialmente na percepção da fala do analisando.
O inconsciente estaria no nível da linguagem ou de lalíngua? Miller nos esclarece que o inconsciente (ICS) está no nível da linguagem e ele é estruturado como uma linguagem. Mas, há que se levar em conta que o próprio Freud já inferia que o ICS é uma hipótese formulada pela psicanálise e edificada pelo analista em sua prática. Portanto, o ICS, tomado como uma hipótese pelo analista, está do lado da linguagem. Mas, do lado do analisando, se pode dizer com Lacan que “o inconsciente é um saber fazer com lalíngua”, uma vez que o que é dito pelo analisando lhe escapa e não responde por todo o trabalho de uma análise. O que estaria fora do dizer do analisando pode ser colocado do lado dos afetos os quais Lacan, mais tarde, nomeará de acontecimentos de corpo e os relacionará com a presença de lalíngua.
Como diz Lacan, “os efeitos da lalíngua vão muito além de qualquer coisa que o ser falante possa denunciar”. Assim, conforme Miller, há uma lacuna entre o que o sujeito é capaz de enunciar e o que ele sente como efeitos daquilo que ele diz e tal constatação “abre um campo não balizado pela estrutura da linguagem”, pois ainda que os efeitos estejam relacionados ao dizer, eles “são empurrados para fora do reino da declaração”. São a esses efeitos que Lacan, segundo Miller, se referencia como acontecimentos de corpo e os diferencia dentre as formações inconscientes.
“Psicanálise em Imersão” é uma lição proferida por Jacques-Alain Miller, em 12 de março de 2008, em seu curso “Orientação lacaniana. Todo mundo é louco”, ministrado na cátedra do departamento de Psicanálise da Universidade de Paris VIII. A versão desse ensinamento foi estabelecida por Pascale Fari a partir de uma transcrição de Jacques Peraldi. O texto acabou não sendo relido por J.-A. Miller, e publicado mediante sua amável autorização em
Revue La Cause du Désir no 106 – O3/2020 – p. 23 – 33.