A Transferência e o Corpo do Analista


por Claudinéia Bento

Amor de transferência

No texto “A dinâmica da transferência” de 1912, Freud afirma que cada indivíduo, através de ações combinadas das disposições inatas e das influências sofridas durante os primeiros anos, tem um método específico e próprio de se conduzir na vida erótica. Através desta afirmação podemos notar que há um certo movimento singular da libido em que o sujeito se conduz na relação com os objetos, isto é, estão presentes certos “clichês” que vão se repetir ao longo da vida do sujeito. Portanto através da transferência o analista será incluído numa das séries psíquicas formadas por esses clichês, recebendo investimento libidinal.

Em 1915, em “Observações sobre o amor transferencial” Freud admite que todo enamoramento repete modelos infantis, e conclui: “não tenho nenhum direito de negar ao enamoramento o caráter de um amor autêntico”. Neste texto nota-se como é difícil lidar com as questões do amor na vida das pessoas assim como no tratamento analítico. O amor de transferência é um amor artificial, provocado pela situação analítica.

Freud adverte que a pessoa do analista, durante o processo analítico, deve reconhecer que o enamoramento do paciente é induzido pela situação analítica e não deve ser atribuído aos encantos de sua própria pessoa. Portanto a psicanálise considera o amor de transferência uma forma de produção inconsciente, uma nova forma de sintoma dirigida ao analista. Assim, Freud recomenda que o analista deve tomar cuidado para não se afastar do amor de transferência, mas deve também recusar qualquer retribuição.

No seminário 8, Lacan se vale de “O Banquete” de Platão para discutir as suas considerações sobre o amor.  No cap. XII, “A transferência do presente”, Lacan, ao falar sobre o amor de transferência, destaca especialmente, o diálogo entre Sócrates e Alcibíades para trazer a temática do amor e da transferência, bem como a questão do desejo que, na cadeia significante, é concebido com base na metonímia, ou seja, nos deslizamentos infinitos dos significantes. Quando esse deslizamento infinito cessa, estanca, o objeto assume o lugar de objeto privilegiado, chamado por Lacan de objeto a, um objeto fundamental na construção da fantasia do sujeito.

Angelina Harari no texto, Ela se enamorou de seu analista, ao citar Freud em, Observações sobre o amor de transferência, (FREUD, 1915) afirma que a experiência analítica se pratica em par e destaca a importância do manejo da transferência na situação analítica, do início ao fim, inclusive em seus impasses. Para que aconteça o processo de análise é necessário que o analisante aceite   receber de um psicanalista algo que perturbe sua defesa. É importante desmontar a defesa do analisante frente ao real. A abertura à transferência, aponta Miller, acontece a partir do momento em que o paciente se entrega à livre associação, colocando-se no lugar de quem busca a verdade sobre si mesmo, sobre seu verdadeiro desejo.

Repetição

Em referência ao texto de Freud “Recordar, repetir e elaborar” de 1914, surge-me a seguinte   pergunta: Qual é a relação desse texto com a transferência?

Para Freud o paciente no dispositivo analítico repete ao invés de recordar e repete sob as condições de resistência.

No seminário XI, Lacan corrobora a ideia de Freud que a transferência é essencialmente resistência ao dizer que a transferência é o meio pelo qual se interrompe a comunicação do inconsciente. A transferência é um tempo de fechamento do inconsciente, não o tempo de abertura. Neste momento percebe-se que existe ambigüidade na transferência. De obstáculo à psicanálise, torna-se seu mais poderoso auxílio.  Para abrir o inconsciente, nos diz Lacan, a interpretação do analista torna-se decisiva.

Miller fazendo uma releitura de Freud em seu texto “A transferência de Freud a Lacan” diz que a chegada imprevista da transferência faz aparecer um fenômeno parasitário que perturba o sujeito, uma espécie de entorpecimento da relação terapêutica. Assinala a transferência como a criação de uma nova patologia. Reconhece que essa nova patologia é inevitável, pois o desejo inconsciente é mobilizado pela cura. Aí notamos o caráter ambíguo, a dupla cara da transferência.

Essa concepção de transferência em Lacan implica que não há exterioridade do analista com relação ao inconsciente, ou seja, a presença do analista é ela própria uma manifestação do inconsciente: assim o analista, como significante, faz parte da economia psíquica do analisante.

 

REFERÊNCIAS:

FREUD, S. Observações sobre o amor transferencial. ( 1915-1914). In: Edição Standard Brasileira das Obras psicológicas Completas de S. Freud. Rio de Janeiro: Imago. 1969. Vol. XII, p. 130-143.

______ A Dinâmica da Transferência. ( 1912).In: Edição Standard Brasileira das Obras psicológicas Completas de S. Freud. Rio de Janeiro. Imago. 1969. Vol. XII, p. 130-143.

______ Recordar, Repetir, Elaborar ( 1914). In: Edição standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro. Imago. 1969. Vol. XII, p. 163-171.

______ Fragmento da análise de um caso de histeria. In: _____. Um caso de Histeria três ensaios sobre a teoria da sexualidade e outros trabalhos. Edição standard brasileira das obras psicológicas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro. 1996. VOL. VII  p. 12-108

 HARARI, Angelina: Publicado no Boletim ECOS 2 para 25° Jornada da EBP MG 2021. Disponível em: CLIQUE AQUI

LACAN, Jaques. O seminário, livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, 1964. Rio de Janeiro. Jorge Zahar. 1998. p.119-119

______. Intervenção sobre a Transferência. In: Escritos ( 1951). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1998. p. 214-225

LACAN, Jacques ( 2010) O seminário, livro 8. A transferência, 1960 -1961. 2ed. – Rio de Janeiro: Zahar.

MILLER, Jacques Alain. A transferência de Freud a Lacan. In: Percurso de Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1988. pg. 55- 58

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