“Ela se enamorou de seu analista” [1]


por Angelina Harari*

A vinheta clínica que Freud apresenta em “Observações sobre o amor transferencial” (1915[1914]) parece-me exemplar para tomar a experiência analítica na medida em que esta se pratica em par e para destacar a importância do manejo da transferência na situação analítica, do início ao fim, inclusive com seus impasses. Para o início, trata-se de consentir, pois “ser analisante é consentir em receber de um psicanalista algo que perturba sua defesa”[2].

Em Conferências introdutórias sobre a psicanálise, no capítulo intitulado “A transferência”, Freud observa:

“quando vemos essa terna ligação do paciente em relação ao médico se repete com regularidade a cada novo caso, quando surge novamente sob as condições mais desfavoráveis e em casos em que […], segundo nosso julgamento, não pode ser questão de atração ou de força de sedução [esse] fato novo que, portanto, admitimos com tanta relutância, não é outra coisa senão o que denominamos transferência”.[3]

E então nossa questão se coloca: como termina ‘essa terna ligação do paciente em relação ao analista’? Com relação a esse “fenômeno que apresenta as mais estreitas relações com a própria natureza do estado mórbido”, a separação do par analítico que se forma no início da experiência é ainda mais determinante. Para Jacques Lacan, a psicanálise, “inventada por um solitário […] [,] é agora praticada aos pares” [4] e pode destituir o sujeito de sua fantasia fálica, fazendo-o renunciar a essa recusa da feminilidade. Como se trata de um par, a contrapartida do lado do analista, é “que não se saberia ser analista estando instituído pela fantasia fálica”[5].

A aspiração ao viril é de ordem fantasmática. Este é o fator comum extraído por Freud para os dois sexos: renunciar a esse “esforço em direção à virilidade como valor”[6]. O obstáculo que representa o manejo da transferência é uma evidência para todo psicanalista iniciante, o que Freud torna visível na seguinte vinheta clínica[7] : uma paciente dá a entender, por alusões ou abertamente, que se enamorou de seu analista. A docilidade e a transferência se transformam, e ela só quer ouvir falar de seu amor, renunciando aos seus sintomas ou negligenciando-os a ponto de se declarar curada. Freud acrescenta que é importante manter a situação analítica e não acreditar que o tratamento realmente acabou, insistindo no fato de que o psicanalista deve claramente considerar as coisas de modo distinto daquele de um profano bem educado.

Nesse mesmo texto, Freud destaca que a literatura psicanalítica pertence à vida real e que a discrição médica para com casos anteriores havia retardado em mais de uma década o desenvolvimento da terapia psicanalítica. A audácia freudiana nos permite atualmente levar em conta uma vinheta clínica, não somente a partir do modelo exclusivo das grandes lições clínicas de Freud ou da literatura analítica propriamente dita. Em direção à bússola clínica de uma vinheta: é no ensino de Jacques Lacan que a vinheta adquiriu amplitude na transmissão da psicanálise, no âmbito do passe e da garantia.

Retornemos à ideia de Lacan, da destituição da fantasia fálica que afeta o ser falante. Aos seus olhos, o melhor exemplo é o próprio psicanalista, por esta razão: a posição analítica é uma posição feminina. E o passe está aí para mostrar como “a virilidade é, por excelência, da ordem da fantasia […]. É isto a instituição do sujeito circunscrita por Freud, ou seja, o caráter radical da instituição fálica do sujeito através da fantasia, que é sempre fálica”[8].

A recusa da feminilidade da qual fala Freud situa-se na cena da fantasia e se trata de conduzir o tratamento até essa escansão do trabalho do analisante, que torna possível renunciar à recusa da feminilidade e separar-se daquele que o envolveu e sustentou nesse trabalho. Isto não quer dizer que cessa a relação com o sujeito-suposto-saber, pois o “inconsciente não se reduz a zero […]. Ele continua ali, e impõe-se […] o dever de continuar a decifrá-lo. [Trata-se de continuar a decifrá-lo], a lê-lo, a viver e a pensar com ele”[9]. O manejo da transferência continua sendo essencial para destituir o sujeito de sua fantasia fálica e para “liberar para o analista por vir um espaço livre de gozo, a partir do qual balizar a concreção de gozo que, para o outro, cause desejo”[10]. Fazer-se causa do desejo do Outro atesta a posição feminina e a do analista. Através da transferência, trata-se de chegar a essa renúncia, para torna-se analista, um analista que organiza “sua operação de modo a ser dela incauto e a fazer-se dela o dejeto […]. A merda é o destino do amor”[11].

A prática, sob transferência, consiste em levar o analisante até o final, sem, contudo, exaltar a posição do psicanalista, preservando assim a disjunção entre a função do analisante e a do analista[12]. Considerar o analista por vir, precisa Jacques-Alain Miller, implica em escolher ‘devir’ analista em vez de ‘ser’ analista. Ele nos fornece esta vinheta clínica para encarnar isto: “alguém que se poderia chamar de uma verdadeira mulher, em um momento de auto satisfação”, lhe dizia: “Com cada um de meus amantes faço um casal diferente”[13]

*    Psicanalista, Presidente da Associação Mundial de Psicanálise (AMP), Analista Membro da Escola (AME) pela Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e pela AMP.

[1] Texto publicado originalmente em Boussoles Cliniques do site www.attentat-sexuel.com, preparatório à . Journées da ECF, em 29 de setembro de 2020. Traduzido e publicado na edição da Correio n.84, Revista da Escola Brasileira de Psicanálise – Corpos que contam, em outubro de 2020.  A coordenação da 25ª Jornada da EBP-MG agradece à autora que, gentilmente, autorizou sua republicação neste Boletim 2.

[2] Miller, J.-A.  Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller: La experiência de lo real en la cura psicoanalítica. (1998-99) aula de 25/11/1998. Buenos Aires: Paidós, 2011, p. 34.

[3] Freud, S. Transferência. (1917) In:­_Conferências introdutórias sobre a psicanálise. v. XVI. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976. P. 514 – 515.

[4] Lacan, J. Prefácio à edição inglesa do Seminário II. (2003) In: __. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. p. 567.

[5] Miller, J.-A. Curso de orientação lacaniana: O Um sozinho. (2011). Aula de 9/2/2011. Inédito.

[6] Idem.

[7] Freud, S. Observações sobre o amor de transferência. (1914). Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de janeiro: imago Editora, 1976. p. 208 – 209

[8] Miller, J.-A. Curso de orientação lacaniana: O Um sozinho. (2011). Aula de 9/2/2011. Inédito.

[9]  Miller, J.-A. Como alguém se torna psicanalista na orla do século XXI. Opção Lacaniana, São Paulo, n. 55, p.16, nov, 2009.

[10]   Ibid, p. 19.

[11]  Ibid, p. 20.

[12] Ibid, p. 20.

[13] Ibid, p. 19.

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