Sobre uma passagem do seminário O Ser e o UM, Miller
por Graciela Bessa

“Et chez le parlêtre, ce choc initial, ce traumatisme introduit une faille qui est aussi bien le phallus, qui est aussi bien la faute, le péché ou, dit Lacan – en prenant la première syllabe de sinthome, sin – en anglais le sinn, le péché.
Et la faille, cette faille initiale tend à s’agrandir toujours, sauf, dit-il, à subir le cesse de la castration.”[1]
Nesta passagem do Curso de Miller, o trauma se dá a partir de um choque inicial que introduz no parlêtre uma falha que tende a crescer sempre. Mas, o que faria cessar o sinthoma, seria a castração, na medida em que “isso pudesse se escrever em um discurso que não fosse semblante, mas sim real. Este é o novo sentido da castração: o que faz cessar as embrulhadas do sentido”[2]
A elaboração sobre “Há Um” presente no Seminário 19, … ou pior, marca uma mudança radical no modo de pensar o funcionamento psíquico. No primado do Um o gozo vem em primeiro plano, o gozo do corpo próprio. “Trata-se de um gozo primário no sentido em que apenas secundariamente ele é objeto de uma interdição”[3]. Um corpo marcado por lalíngua que faz nele acontecimento. “Esse acontecimento de corpo que é gozo aparece como a verdadeira causa da realidade psíquica”[4].
Para Laurent[5], esse choque inicial de lalíngua com o corpo, não é uma inscrição do tipo impressão, mas a inscrição de um furo que determinará circuitos. Ou seja, lalíngua é a entrada do gozo no corpo, mas desse enxame de S1, é preciso que um deles alce voo, se destaque desse enxame, e se escreva como letra. “Lalíngua é o início do gozo, enquanto a letra é sua marca, o recorte de um modo singular de gozo”[6], resultando numa localização do gozo que irá se repetir no sintoma. Sob essa perspectiva a letra é marca de uma cicatriz, desse buraco em lalíngua pela extração de um S1. É isso que funcionará como trauma. “O trauma é o elemento contingente que marca o corpo, que escreve no corpo a letra de gozo, e que ao mesmo tempo, esburaca o real”[7].
Só a partir da inscrição da letra, consequentemente a inscrição do furo, dessa falha, como nos diz Miller, é possível a articulação de um S1 com um S2. Patricio Álvarez constitui três tempos lógicos para pensar a articulação entre lalíngua, a letra e a linguagem. Num primeiro tempo, temos lalíngua como enxame de significantes. O segundo tempo se caracteriza pela extração de um S1 como efeito do troumatisme. Sua extração produz uma borda e um furo. Esse S1 destacado funcionará como letra que se repetirá no sintoma. No terceiro tempo lógico esse S1 se articula ao S2, produzindo a linguagem como elucubração de saber. Há aqui uma amarração do Um com o Outro da linguagem.
Numa análise, para chegar a esse choque inicial, que é o choque do corpo com lalíngua, é preciso a partir da proliferação de sentido produzida por essa elucubração de saber da linguagem, se extrair os S1 de lalíngua, marcas de gozo. Ou seja, cernir o real do sinthoma, fazendo cessar as embrulhadas do sentido.
REFERÊNCIAS:
[1] MILLER, J.-A., Curso de Orientação Lacaniana. O Ser e o Um. Lição 25/5/2011. Inédito. “E no parlêtre, este choque inicial, este trauma introduz uma falha que é também o falo, que também é falha, pecado ou, diz Lacan – tomando a primeira sílaba de sinthome, sin – em inglês sinn, o pecado. E a falha, essa falha inicial, tende a ficar cada vez maior, exceto, diz ele, para suportar a cessação da castração” (tradução livre)
[2] Idem
[3] Miller, J.-A., Curso de Orientação Lacaniana. O Ser e o Um. Aula de 11 de maio de 2011. Inédito.
[4] idem
[5] LAURENT, E., Por que o Um? In: GORSKI, G. G.; FUENTES, M. J. S., Leituras do Seminário … ou pior de Jacques Lacan. Salvador: Escola Brasileira de Psicanálise, 2015.
[6] ALVAREZ BAYÓN, P., El autismo, entre la lengua y la letra. Olivos: Grama Ediciones, 2020, p. 85.
[7] Idem, p. 93