Trauma e acontecimento de corpo


por Patricia Bosquin-Caroz

Isaura Pena. Desenho, aguada com nanquim em papel.

Muito rapidamente, voltarei às contribuições de Freud a respeito da questão do trauma, a fim de apresentar-lhes uma nova abordagem, como fez Lacan em seu último ensino e como continua Jacques-Alain Miller em seus últimos cursos[1]. Tentarei depois demonstrar como essa nova conceituação do trauma é útil para mim na compreensão do fim de minha experiência analítica.

 

O a posteriori, a estrutura do trauma

No seu artigo de 1896, intitulado Novos comentários sobre as psiconeuroses de defesa (1896) Freud reafirma seu ponto de partida sobre a etiologia da histeria, que ele liga à “ação traumática das experiências vividas»[2] e, de uma certa maneira, ele estende sua reflexão especificando que esses traumas psíquicos estão relacionados com a vida sexual infantil. De fato, em seu primeiro artigo sobre As neuropsiconeuroses de defesa (1894)[3], Freud  abordou a neurose histérica como defesa contra uma representação sexual inaceitável e insuportável para o ego.

«Na histeria, a representação irreconciliável se torna inofensiva pelo fato de sua soma de excitação ser transferida para o corporal, um processo para o qual proporei o nome de conversão[4]. »   Em relação a essas representações, que são canalizadas dessa forma, Freud menciona a formação de um núcleo criado em um momento traumático, que pode aumentar por ocasião de novas ofensas e, novamente, dar lugar a conversões que permitam a descarga do excesso de excitação. É por meio da causalidade sexual que anima a constituição do trauma que Freud descobre uma temporalidade própria a si mesma.

Com o caso Emma,[5] publicado em 1896, ele afirma uma temporalidade que não é linear, que não é mecanicista de causa e efeito, mas que tem a estrutura do a posteriori. É uma temporalidade em duas etapas que pressupõe um primeiro evento que será constituído como traumático por um segundo evento. Tomemos brevemente o caso de Emma. Emma não pode entrar sozinha em uma loja e credita isso a uma cena que ocorreu quando tinha treze anos. Ela entrou numa loja e foi surpreendida pelo riso zombeteiro de dois balconistas. Eles tinham zombado de suas roupas. Com a análise, outra causalidade é revelada, desta vez, antes do evento consciente do riso zombeteiro. Aos oito anos de idade, ela havia entrado por duas vezes em uma mercearia para comprar doces e o lojista havia colocado sua mão, através do tecido do vestido dela, em seus genitais. Na ocasião do seu trabalho de associação,  Emma vai ligar o riso dos dois vendedores ao riso que o comerciante havia colocado em seu rosto. O riso é o ponto comum que une esses dois gestos.

Mas essa não é a principal razão pela qual Emma não pode entrar sozinha em uma loja. O que a análise desse caso revelará é que, é a excitação sexual que ela experimentou que a impede de ir sozinha a uma loja. Entretanto, o primeiro incidente em si não tinha despertado nenhum afeto e é só a posteriori, enfatiza Freud, que a recordação recalcada se transforma em um trauma, ou seja, após o novo entendimento dos fatos que a puberdade permite. Lembremos que Freud coloca a causa sexual no centro da questão do trauma e que, em sua prática, ele rastreia a memória do trauma, o que lhe permite destacar essa estrutura do a posteriori do trauma, mas também do recalque histérico.

O próprio Lacan daria todo o alcance a essa estrutura do a posteriori, notadamente, em relação ao caso do Homem dos Lobos, em seu texto de 1953 publicado no Escritos, “Função e Campo da Fala e da Linguagem em Psicanálise”[6].  Lacan sublinha que Freud exige “uma total objetivação das provas quando se trata de datar a cena primária »[7], mas também assinala a atenção que Freud presta à « ressubjetivação do acontecimento»[8],  estas reestruturações que operam após o fato e que permitem que o sujeito se estruture.

 

Do núcleo traumático à marca traumática

Desde o seminário Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise, Lacan aborda o trauma por meio da tiquê, o encontro traumático, aquele que ocorre apenas uma vez e que vai envolver a repetição, o retorno dos significantes com o propósito de assimilar o inassimilável que jaz no coração desse encontro. Nesse seminário, Lacan articula a insistência da cadeia significante ao real, ou seja, ao elemento inassimilável do acontecimento traumático, ao núcleo traumático ineliminável, impossível de reabsorver pela operação do sentido[9].

Em outras palavras, o elemento que não pode ser reabsorvido pela representação significante é concebido aqui como o que impulsiona a repetição, a reiteração de significantes que falham a Coisa. O real é concebido como aquilo que escapa à rememoração do acontecimento traumático e aos remanejamentos a posteriori  “do que falhou em fazer verdade”[10] para um sujeito.

No final de seu ensino, Lacan voltará a essa questão do núcleo traumático para enfatizar a incidência traumática da própria lalíngua. Em seu Seminário L’insu … , ele diz, na aula do 18 de abril de 1977: “Freud delira, justo o que é preciso, pois ele imagina consigo mesmo que o verdadeiro é o que ele chama, por sua vez, de núcleo traumático”. Lacan, aqui, opõe à suposta existência de um nó traumático, do qual nos aproximaríamos ao falar na associação livre, à língua que é bem  rodada.[*] Só há essa que é rodada, ele diz, isto é, a aprendizagem a que uma língua submete a gente e que ele escreverá em uma palavra: lalíngua. À prevalência da função verdade, Lacan substitui o borbulho da linguagem, o borbulho da cultura. Nessa mesma aula, ele faz valer o  impacto do traumatismo de lalíngua que não é tanto para ser buscado do lado dos efeitos do sentido, mas, antes, do lado de seus efeitos de gozo.  Lacan enuncia que, qualquer que ela seja, lalíngua é uma obscenidade. Este termo, lalíngua, designa aquilo o que precede a estrutura da linguagem que, em seguida, vai lhe dar sentido.  depois lhe dará significado. Lalíngua é a lalação da linguagem, sua jaculação, sua materialidade sonora. O que se escuta antes do sentido.

Ao  final de uma análise, algo dessa ordem é capturado, algo que  marcou o falasser – aquele que fala e é falado -, que precede o sentido edipiano e que é mais uma questão do impacto das palavras sobre o corpo, do choque das palavras sobre o corpo ou da “percussão das palavras sobre o corpo”, como disse J.-A. Miller em seu último curso,  O ser e o Um[11].  O corpo aqui não deve ser entendido como um corpo especular, mas como uma substância gozosa. Assim, o acontecimento traumático deve ser entendido como um acontecimento de corpo. O acontecimento traumático, ou o acidente contingente se abriria, como ele já havia formulado em seu curso intitulado A experiência do real na cura analítica[12], à incidência da linguagem sobre o ser falante e, mais precisamente, sobre seu corpo.

Portanto, o afeto essencial seria, ele afirma, o afeto que a língua traça sobre o corpo. Nessa perspectiva, o sintoma seria o circuito de repetição que é desencadeado por um acontecimento de corpo, que faria dessa marca puramente contingente um  não cessa de se escrever, ou seja, uma reiteração dessa primeira marca que não cessa jamais.

Isso não significa que a análise dispense o sentido e a busca da verdade. Em uma análise, como disse J.-A. Miller em seu curso Sutilezas Analíticas[13]  trata-se de fazer verdade do que foi e do que faltou em fazer verdade, ou seja, o trauma, o que fez furo (trou) e que Lacan vai chamar de troumatismes. Em uma análise, trata-se de fazer chegar ao discurso aquilo que não teve  lugar… Dito isso, a experiência psicanalítica, como Lacan a concebeu no final de seu ensino e como J.-A Miller a formaliza hoje, é impulsionada para além das revelações do inconsciente e de suas reelaborações, para além das marcas identificatórias que organizam a janela fantasmática através da qual o sujeito olha para o mundo. Assim, o que está isolado ao fim de uma experiência analítica concerne  mais à maneira como o corpo se goza, goza do significante que o marcou, que nele percutiu e  imprimiu um modo singular de gozo.

 

Uma marca contingente e seus efeitos de afeto

Essa apreensão do choque da lalíngua no corpo, de fato, foi escandido ao fim de um longo percurso analítico que se efetuou com dois analistas e em três tempos. De fato, este percurso terminou com a apreensão do que havia feito trauma na minha relação ao Outro, ouvindo a língua materna como lalíngua.

O que havia feito trauma foi um acontecimento contingente de discurso em razão do qual  o falasser fez uma marca, o selo de um modo de gozo que jamais cessaria. Esse acontecimento de discurso dizia respeito a uma declaração proferida pelo Outro materno que tinha surgido no final da análise nas associações da analisante, como se sempre tivesse estado presente, mas sem ter sido realmente levado em conta, até então, em seu valor traumático. Assim, foi uma frase pouco tocada pelo processo analítico que visava, notadamente, através da rememoração de lembranças infantis, atenuar o excesso de carga emocional.  De fato, essa afirmação se apresentava ao final do percurso analítico como tendo um certo valor de fixidez. Mas de qual fixidez se trataria, sabendo que o processo analítico visa precisamente fraturar a fixidez da significação fantasmática que orienta o modo de gozo do sujeito? Podemos então falar de fixidez sinthomática nesse caso? Aquela que não se atravessa, não se fratura, mas se isola no final de um processo de redução?

No que me diz respeito, estou me referindo aqui a um enunciado materno que surgiu durante uma das últimas sessões analíticas, não há lugar para você, enunciado que indexou uma modalidade de devastação materna. Esta frase, pronunciada por minha mãe muito depois do acontecimento traumático ao qual este enunciado se referia, surgiu após um sonho que relatei ao analista e que encenou o deixar cair  materno.  O que me perturbou nesse sonho foi, essencialmente, a voz de minha mãe, uma voz que (no sonho) tinha me deixado sem voz. De fato, havia nesta voz alguma coisa de inqualificável,  de inominável que eu buscava, na sessão, nomear. Foi seguindo esse fio  que essa frase se impôs, como uma evidência, como um é isso!, no momento em que eu a proferi em voz alta! Este enunciado – Não há lugar para você – referia-se a uma cena em minha infância em que, de algum modo, eu havia sido deixada para trás. Ele foi acolhido pelo analista que constatou: “isso é um trauma”.

Esse surgimento permitiu, a partir de então, uma desativação, uma desmontagem de um gozo que se apresentava como um resto sintomático, ou seja, uma forma de bovarismo que eu cultivava desde minha adolescência, suscetível de reconfiguração. Além disso, eu havia retomado uma última tranche de análise (a terceira), pois ainda estava às voltas  com esse resto intocado de uma longa análise, na qual a fantasia havia sido atravessada e o modo de gozo pulsional oral isolado. O surgimento deste enunciado tinha, acima de tudo, feito ressoar, desta vez, um valor de gozo drenado pela linguagem materna e que eu chamei de desenvoltura.

A desenvoltura foi a palavra que eu tinha encontrado durante meu primeiro testemunho do passe  para qualificar um gozo indizível, que tinha se manifestado nesse sonho de final de análise e que condensava a voz materna. Esta palavra denominava isso que, a partir da lalíngua, havia percutido, marcado o corpo do falasser. A desenvoltura designava uma forma de fazer, uma maneira de dizer que autentificava a frase dita de maneira despreocupada por uma mãe à sua filha: Não há lugar para você. Se esse enunciado ecoa, de certa forma, o drama da típica posição de exclusão histérica – voltaremos a isso – ele está, no entanto, também correlacionado a um acontecimento de corpo, o deixar cair. É esse acontecimento de corpo que acabou sendo isolado no final da análise, destacado de qualquer significado edipiano, mas ligado a este simples enunciado contingente, condensando a desenvoltura  do Outro. Desenvoltura que, podemos dizer, havia marcado o falasser, imprimindo-lhe um modo de gozo sobre a forma de um humor do tipo melancólico. Essa percussão do corpo por lalíngua seria isolada como tal, como um resto irredutível, suscetível de ser desativado. A desativação obtida me autorizou a dar o passo do passe.

 

Da frase impessoal fantasmática ao trauma singular

Hoje, proponho voltar mais precisamente a esse enunciado materno isolado no final do percurso analítico. Foi um enunciado que eu havia desconhecido durante todos esses anos de análise e que, finalmente, se revelou ao final de um longo processo de levantamento do recalcado? Certamente que não. Essa frase sempre me acompanhou como uma sombra. Era bem uma parte da minha história, uma história banal de uma mãe que prefere seus filhos à sua filha. Este enunciado apenas mudou seu valor no decorrer da análise e, finalmente, carregou uma nova carga libidinal.

Durante uma primeira análise, eu havia me lembrado muitas vezes de uma cena marcante de minha infancia, na qual, essa frase do final, não há lugar para você, dizia respeito. Quando eu tinha cinco ou seis anos de idade, eu tinha sido deixada aos cuidados da empregada de minha mãe durante um longo período de férias, quando ela estava viajando com meu pai e meus irmãos mais novos. Dócil, nao fiz disso um drama. De fato, não havia espaço para mim nessa conjuntura, pois éramos três crianças e só havia lugar para dois. Era uma evidência que eu não contestava.

Tal era a lógica materna e mesmo da família, já que era endossada por meu pai que não havia dito palavra. Tudo isso aconteceu sem problemas, inclusive a minha estadia na casa dessa senhora, exceto por um detalhe: o riso zombeteiro de um jovem que era deficiente, privado da motricidade de suas pernas, tinha me surpreendido em meus jogos de criança solitária.

Pode-se dizer que, em retrospectiva, esse olhar zombador teve o impacto de transformar em dano real um acontecimento contingente. O jovem paralítico, a partir de então, seria aquele que macularia o quadro familiar. De fato, esse olhar zombador teve como conseqüência exacerbar a escolha fálica de minha mãe da qual eu havia sido excluída. A privação feminina se revelara dolorosa. Em outras palavras, se eu havia sido excluída, era por ser uma menina, aquela que não tinha o que era preciso para fazer parte da viagem.  Aí se desvelou, de maneira fulgurante, a preferência fálica de minha mãe com a qual eu não iria mais parar de me confrontar. Minha mãe preferia os homens. Mas, afinal de contas, o que poderia ser mais legítimo para uma mulher!

Minha primeira análise foi para destacar a reivindicação fálica que eu havia endereçado, quando criança, à minha mãe e depois aos homens. Quanto a meu pai, que de certa forma estava ausente por estar muito ocupado em salvar e restaurar um ideal paterno danificado, eu me afastei dele por um tempo para me dirigir àquele a quem minhas orações buscavam fazer responder  e que eu escolhera a partir do modelo paterno do salvador sacrificado, o Cristo. Assim, desde a infância, até meus últimos anos de adolescência, tornei-me uma jovem piedosa. Minha primeira parte de análise me permitiu localizar a identificação crística que daria, mais tarde, suporte à  fantasia: uma mulher é sacrificada. Poderia se dizer que esse traumatismo infantil, rememorado no tratamento, tinha se encontrado ali para ser suplantado, para ser metaforizado, graças ao apoio tomado sobre essa identificação sacrificial. O que fez trauma foi, principalmente, ligado à vertente da privação feminina e que verificou a versão da feminilidade que me foi transmitida: ser mulher é ser uma pobre mulher. A construção da fantasia, uma mulher é oferecida em sacrifício, sob o olhar de um pai impotente, daria sua estrutura ao gozo sacrificial, sublimação da privação feminina.

Esta construção da fantasia seria selada durante uma primeira experiência de passe pela qual eu me tornei membro da Escola. Este fantasma se atravessaria, então, em favor do segundo analista: Mas, é claro, você é aquele jovem que é levado à morte! Interpretação que fez, em um primeiro tempo, vacilar a identificação fálica com o pai impotente e que, em um segundo tempo, tornou possível trazer à luz o movimento pulsional oral que animava uma demanda insaciável de amor, endereçada ao pai, ao homem amado e, em seguida, ao analista.

A propósito desta frase, “uma mulher é oferecida em sacrifício”, Éric Laurent, que conduziu uma sessão de ensino do passe em Bruxelas em maio passado, enfatizou a diferença entre, por um lado, a frase fantasmática, impessoal, que condensa uma série de enunciados que foram ditos, enunciados em estado de espera  e que conseguiram ser ditos na experiência, isso que chamamos de fantasia fundamental e, por outro lado, o trauma fundamental, que eu havia designado como desenvoltura maternal. A desenvoltura é um nome, desta vez um nome singular, dado ao trauma do deixar cair. Nesta palavra, escuta-se, como É. Laurent assinalou, essa raiz de involtura, o envelopamento, cujo avesso seria um deixar cair. Assim, por um lado, ao final de um primeiro processo analítico, temos um conceito impessoal, uma frase fantasmática que é construída, difratada e depois atravessada e, por outro lado, ao final de uma última experiência, temos um trauma singular que se isola, que não se atravessa, mas que, de minha parte, se desativara.

A fantasia do sacrifício, ou o trauma do “desenvelopamento”, não têm o mesmo valor de gozo. O sacrifício assume um valor fálico para o sujeito, há uma recuperação de um mais de gozar, enquanto o trauma, que aqui se refere à desenvoltura do Outro, está correlacionado ao puro acontecimento de corpo, ou seja, ao deixar cair. É para esse afeto que o segundo movimento do processo analítico acabaria, in fine, a me reconduzir. A segunda análise, sublinhou ainda É. Laurent, teve, deste ponto de vista, um pequeno efeito de contra-análise. Eu acrescentaria, não há contra-análise sem análise.

No fundo, pode-se dizer que o trauma da exclusão histérica iria finalmente ser conduzido à raiz do acontecimento de corpo, aquilo que, no corpo, respondia por uma sensação de queda ou de vertigem. O fenômeno da vertigem tinha inicialmente indexado aquilo que se isolaria como deixar cair. Isso se manifestou no final do último percurso analítico, quando ressoou, em uma sessão final, o silêncio do Outro. Silêncio que eu não preenchia mais fazendo o Outro comer o drama da minha história. De fato, eu havia me calado e não mais esperava que o analista falasse. Foi neste momento em que ressoava o silêncio que esse fenômeno de vertigem se manifestou, o que me permitiu, então, apreender o que tinha motivado meu discurso de analisante: fazer o analista comer emoção e assim fazê-lo vibrar, fazê-lo responder, fazendo-o vibrar.

Dito isso, como já havia assinalado, ainda não havia terminado a análise, pois voltei a ver este analista mais de um ano após esse momento final. Eu estava, então, lutando contra esse resto sintomático, tomada de um humor de aspecto melancólico.  Nessa época, acontecia de eu cair repentinamente (um fenômeno transitório), mas, sobretudo, me sentia deixada cair. Portanto, eu não fiquei satisfeita com esse final. Retomei meu trabalho como analisante, apesar de ter desinvestido o inconsciente transferencial, do qual eu  já não esperava mais que me entregasse o sentido do meu sintoma.

Ao fim de  um ano, durante o qual o analista continuou me enviando, sem cessar, ao saber já extraído do meu tratamento, fiz um sonho inédito no qual minha mãe anunciou com desconcertante despreocupação que estaria abandonando marido e filhos. Depois disso, várias lembranças me vieram, colocando em cena o  deixar cair maternal e a frase que havia acompanhado uma delas: “Não há lugar para você”. Este conhecido enunciado materno ainda não havia assumido todo o seu significado libidinal. De fato, o que iria ser isolado aqui seria mais o resultado de um encontro contingente com a desenvoltura do modo de falar materno que havia marcado o falasser, ao ponto de nele imprimir um modo de gozo melancoliforme do inconsciente, com o qual ele iria tamponar o encontro faltoso com o parceiro de amor.

Este é o acontecimento de corpo que iria se isolar, o impacto de um dizer, ou melhor, de uma maneira de dizer sobre o corpo que, depois, teve efeitos de gozo. De fato, eu  havia feito do encontro contingente com a desenvoltura do Outro, necessidade. Eu me nutria do nada, em ser nada para o Outro. Eu havia transformado uma exclusão contingente em uma exclusão sintomática, suscetível de ser repetida. A desativação obtida ao final da análise era uma forma de qualificar a demontagem de uma repetição, de iteração do mesmo.

Este enunciado e outros nomes que me qualificavam, como aquele de Cinderela, emergiram ao final do percurso analítico, quando o sentido edipiano havia sido esgotado, mas, desta vez, como indexação de um gozo fora do significado. A constatação do analista, é um trauma!, isolaria o efeito no corpo de enunciados traumáticos, desarmando, ao mesmo tempo, seu impacto.

 

Tradutor: Pascal Donnart

Revisão: Paula Pimenta e Patrícia Ribeiro

 

NOTAS:

[*] No original, “la roulure de la langue(…) Il n’y a que la roulure”. Conforme nos esclarece Sérgio Laia, a quem muito agradecemos, o termo roulure aponta tanto para a ação de rolar, como também para a palavra prostituta. Nesse caso, Lacan optou por uma palavra francesa menos conhecida do que prostituta, para destacar a implicação de lalingua com o gozo,  com a obscenidade e não com o sentido. Assim, para manter a consonância com o francês roulure, Sérgio propôe a nossa injúria mulher “rodada”, que se aproxima da chamada mulher de má fama.

[1] Texto  apresentado na Seção Clínica de Bruxelas em dezembro de 2011, durante a Soirée do Passe em 15 de novembro de 2011, na ECF. Publicado na revista Quarto 101-102, p. 96-100 e traduzido para publicação neste Boletim da 25ª. Jornada da EBP-MG com a amável autorização da autora.

[2] FREUD, S. Novos comentários sobre as neuropsicoses de defesa.(1896) In: Edição Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 3. Rio de Janiero:Imago,1996, ps.187-211

[3] FREUD, S. As neuropsicoses de defesa.(1894). In: Ediçaõ Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 3. Rio de Janiero:Imago,1996, ps.57-73

[4] FREUD, S. Op. Cit.,p. 61

[5] FREUD, S. Projeto para uma psicologia científica. (1895 [1950]/1996). In: Ediçaõ Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 1. Rio de Janiero:Imago,1996, ps.335-454.

[6] LACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In:. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 238-324.

[7] LACAN, J. op. cit., p. 257.

[8] LACAN, J. Ibid.

[9] LACAN, J. O Seminário. Livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.

[10] MILLER, J.-A. Sutilezas analíticas (2008-2009). Buenos Aires.  Ed. Paidós. 1a edición. 2014.

[11] MILLER, J.-A. L’orientation Lacanniene. L’Être et l’un.(2011) Inedit.

[12] MILLER, J.-A. La experiencia de lo real em la cura psicoanalitica (1998-1999). Buenos Aires: Ed. Paidós, 1ª. edición, 2003.

[13] MILLER, J.-A. Sutilezas analíticas (2008-2009). Buenos Aires. Ed. Paidós. 1a edición. 2014.

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