O que faz sintoma para um corpo: a nova escrita do sintoma


por Helenice de Castro (Mais-Um)

Cartel: Fernanda Otoni, Laura Rubião, Lucíola Macêdo, Ludmilla Féres, Marisa Vitta, Michelle Sena, Miguel Antunes e Renata Mendonça

Isaura Pena. Desenho, aguada com nanquim em papel.

Então, parto do começo com a questão do que faz sintoma para um corpo, da qual se desdobraria a pergunta sobre as relações do corpo com o sintoma.

Por essa via, acompanhamos, no ensino de Lacan, um percurso que vai do sintoma como metáfora ou mesmo ciframento semântico das experiências pulsionais, produzindo um eclipse do corpo pelo simbólico, até o sintoma como acontecimento de corpo. Nessa direção de tomar o corpo como acontecimento sintomal, Lacan chega a dizer, em 1976, que “assim, indivíduos que Aristóteles toma como corpos podem não ser nada além de sintomas, eles próprios, em relação a outros corpos”[1].

É interessante como essa proposição de Lacan remete a existência humana a sintomas perambulando pelo mundo e introduz assim uma nova psicologia das massas, na qual, como nos sugere Éric Laurent[2], o laço social se dará não tanto mais fundado na identificação, mas a partir do acontecimento de corpo. Voltarei a esse ponto um pouco adiante, pois cabe ainda explorar o percurso, em Lacan, da relação do corpo com o sintoma.

 

Um lugar para o fora do corpo e o sem lugar

No Seminário 11, onde os quatro conceitos fundamentais da psicanálise são relidos de forma inédita, surge essa invenção de Lacan que é o objeto a. Temos aí uma inflexão fundamental na concepção do corpo e do sintoma, pois com o objeto a inaugura-se a dimensão do gozo que escapa ao corpo, instalando assim uma experiência de um fora do corpo.

A maneira como Lacan irá reler a brincadeira do neto de Freud esclarece essa travessia em seu ensino, que parte da busca por se recobrir o excesso corporal pela cadeia significante para o que, em 1964, surge como fracasso desse recobrimento no encontro sempre faltoso do simbólico com o real.

Portanto, nessa outra perspectiva dada ao Fort-da, o efeito do desaparecimento da mãe se torna secundário, sendo o ponto em que ela abandonou perto do filho o que ele vigia. Essa hiância introduzida pela ausência da figura materna (e que ficará para sempre aberta) aponta para a falha do significante em simbolizar essa ausência, o que faz com que o sujeito, diante desse fosso e reduzido ao silêncio, se apegue ao objeto. O carretel não é, então, a mãe reduzida a uma bolinha, nos diz Lacan, mas “alguma coisinha do sujeito que se destaca embora sendo ainda bem dele[3]”. É com esse objeto destacado e automutilado, mas que também condensa algo do gozo, esse objeto em sua condição de extimidade, que a criança saltará o fosso. É ainda com ele que começa o encantamento, poderíamos dizer, da produção dos sentidos fantasmáticos. Com o objeto a Lacan inventa algo que resta como excedente ao simbólico, que já não é mais, ele mesmo, significante.

Porém, vale ressaltar que se essa leitura introduz a dimensão de um real pulsional do corpo inassimilável pelo significante, veremos adiante, mais precisamente no Seminário 20, como Lacan assumirá a natureza de semblante do objeto a, pois mesmo que esse objeto se encontre no caminho que vai do simbólico ao real, é ainda um modo para o corpo se gozar, através de um desvio pelo roteiro ritualizado de sentido que a fantasia proporciona.

Como nos lembra Simone Souto, “na fantasia, o objeto a é capturado por um sentido que tem como coordenada o desejo do Outro: trata-se do objeto que se é para o Outro, um olhar, uma voz… etc.”[4]

Portanto, o sintoma, sustentado na lógica fálica fantasmática, visa a obturar pelo sentido a experiência do sem-lugar no corpo para o gozo, equivalendo essa experiência a uma falta-a-ser. O sintoma, por essa via, proporcionaria ao sujeito a ilusão de ganhar corpo através de uma pretensa consistência ontológica. Assim, o sintoma buscaria fazer ser.

Insistindo um pouco mais, se o Seminário 11 com o objeto a introduz o vazio, através da hiância à beira do berço com a qual a criança tem que se haver, como vimos na releitura feita ali do Fort-da, o fracasso dessa localização do gozo ficará cada vez mais premente e, de um lugar reservado ao vazio que se constitui pelo encontro sempre faltoso com o real, passa-se ao sem lugar da ausência primeira que o choque da língua inscreve no corpo.

A noção de sinthoma virá portar essa opacidade do gozo que não se deixa fazer ser.

Estamos assim na dimensão do que faz sintoma para um corpo pela via do ter um corpo, sem ser em parte alguma. Explico melhor com o auxílio de Laurent. Ter um corpo seria fazer a experiência do gozo, que se inscreve pela incidência da língua nesse corpo, porém essa experiência não produz nenhum correlato subjetivo[5]. Não há agente, não há por que, como nos descreveu tão bem o relatório apresentado por Antônio Teixeira[6]. Daí produz-se um sujeito como ausência, como furo, ou mesmo o falasser troumatisé. O neologismo troumatisme criado por Lacan, que Sérgio Laia traduziu por furotraumatismo, diz dessa experiência veiculada pelo sinthoma, que insiste em fazer o corpo se ausentar.

Esse ato de fala que tem como efeito o gozo desloca a linguagem de sua função de informação ou mesmo de comunicação, e o que se coloca em jogo é sua incidência material através da noção de lalíngua. Essa linguagem que se torna aparelho de gozo, faz com que Lacan defina lalíngua como uma obscenidade[7].

Assim, poderíamos dizer que o que faz sinthoma para um corpo é a consistência de gozo que faz com que esse corpo ex-sista. Esse gozo que não se conecta com o Outro e como gozo do Um-sozinho, não quer dizer nada a ninguém.

Com essa concepção de corpo sinthomal chegamos a um impasse que o último ensino de Lacan coloca para a experiência analítica pois, se a psicanálise é uma experiência da palavra, como forçar uma saída do autismo do se gozar do corpo, presente no sinthoma, de seu pretenso solipsismo ou individualismo? Como forjar, a partir do encontro com um analista, a construção de um laço social que salvaguarde a singularidade do sintoma como acontecimento de corpo?

 

Acontecimentos de corpo políticos e a imanência do sinthoma

Em Psicologia das massas e análise do eu, Freud localizará o fundamento do laço social no traço identificatório com o pai da horda. Ou seja, o líder do grupo é sempre aquele que vem ocupar o lugar do ideal do eu, sendo elevado ao grau máximo de autoridade. Teríamos assim um laço social fundado sobre a base da identificação, que se desdobra na identificação vertical ao condutor do grupo, mas também na identificação horizontal entre os demais.

Lacan beberá nessas águas da psicologia das massas ao considerar, assim como Freud, que o ser falante é também por excelência um ser social. E é nessa direção que ele definirá que “o coletivo não é nada mais do que o sujeito do individual”[8].

Essa definição de Lacan sobre o coletivo parece-me reforçar a concepção da transindividualidade do sujeito para a psicanálise, porém, diferentemente de Freud, a noção de sintoma como acontecimento de corpo esboçaria agora uma nova psicologia das massas, na qual o laço se daria não mais pela identificação, mas a partir do que da linguagem afeta o corpo do indivíduo.

Como nos explica Lucíola Macêdo, se Lacan evidencia no Seminário 20 que o laço social é um assunto de linguagem, ele não está se referindo ali ao campo do sentido, da tradição, nem mesmo a como os discursos funcionam determinando modalidades de gozo, mas “ao que da linguagem se alastra, infesta, pulula, tilila no corpo”[9] sustentando o laço entre os falasseres.

Como essa concepção do laço social sustentado pela política do sinthoma poderia nos orientar na direção de um tratamento psicanalítico?  Ou mesmo, como a psicanálise, partindo de “acontecimentos de corpo políticos”[10], faria emergir a singularidade do sintoma como acontecimento de corpo para que daí surja uma nova escrita que relance o sujeito no laço social?

Essa questão nos levou, no cartel, à discussão de um caso clínico que permitiu avançar sobre o modo como um acontecimento de corpo biopolítico, no caso a pandemia, vem incidindo para cada um de forma diferente, tomando a dimensão traumática para alguns no ponto em que a subjetivação do sexual do corpo faz furo. Nessa direção, poderíamos dizer que o sujeito, em sua transindividualidade, não é indiferente ao que se passa no campo social, porém nem todo acontecimento coletivo doloroso é traumático, em seu sentido estrito. Para a psicanálise, portanto, o trauma dependeria de um encontro contingente com um real fora da lei, que se apresenta como gerador de angústia na singularidade de cada caso.

A discussão desse caso clínico pôde também introduzir a questão sobre como ali o desejo materno pela filha morta que antecede o nascimento do sujeito ganha o valor de trauma, afetando seu corpo e instalando assim um modo de gozo.

Destaca-se o interesse da psicanálise pelo que do trauma coletivo faz ressoar no corpo o gozo não-todo em jogo no sinthoma para que no percurso de uma análise, breve ou não, esse gozo possa ser experimentado mais além das amarras mortíferas da fantasia. Essa bússola se coloca presente desde o início de uma experiência analítica e vai acompanhá-la até o final.

 

A dança com o sinthoma

Uma das primeiras questões surgidas nas discussões do cartel que visaram à preparação desse texto foi a relação entre trauma e acontecimento de corpo. Se o caso mencionado acima introduziu elementos para esse debate, foi possível extrair do testemunho de passe de Patricia Bosquin-Caroz a conexão direta entre o trauma e a instalação do sintoma como acontecimento de corpo.

Esse testemunho também desvela a passagem, em jogo numa experiência analítica, do sintoma histérico – aquele que, ao fazer o corpo falar, fala a língua do pai – ao sintoma que se limita à escrita silenciosa da consistência de gozo.

Logo na adolescência uma fobia de avião aparece. É a partir desse sintoma que se tece a trama edipiana sustentada nos objetos olhar e voz, fios aos quais o sujeito se agarrava para não cair no vazio.

Um sonho no final da análise permitirá reduzir tal trama à fantasia fundamental: “ela havia efetivamente se voltado a comer fogo, o morto materno, sob o olhar de um pai fascinado e impotente, que ela tentava fazer vibrar”[11].

Com o relato de seu romance familiar, ficamos sabendo que seus pais tiveram três filhos. Dois homens e ela, a mais nova. Sua mãe sempre fora uma mulher deprimida e seu pai um homem todo voltado para os negócios. Diante dessa ausência do pai, é a filha que, vestida com as insígnias fálicas paternas, irá se ocupar da mãe e da avó viúva, assumindo o lugar de um jovem cavalheiro para essas mulheres.

Na adolescência, numa viagem de avião, na qual se encontravam apenas mãe e filha, uma forte tempestade coloca em risco aquele voo. A partir desse momento, sua relação com o pai se torna turbulenta, pois passará continuamente a provocar a ira dele, ou seja, tentará fazer sua voz brotar ou mesmo arrancar do silêncio a voz do Outro. O avião se torna assim o significante de sua fobia, pois encarna ao mesmo tempo o corpo que cai no silêncio da noite e o que faz explodir, queimar. Ela preferia a explosão ao silêncio.

É esse funcionamento pulsional que se reeditará em sua vida amorosa, promovendo uma erotomania devastadora.

Duas interpretações do analista irão desmontar essa armadura sintomática. Ao relatar mais uma vez seus desencontros com o parceiro amoroso, tema recorrente na análise, o analista lhe diz: “Não é a ele que você ama, são as suas lágrimas!”. Para numa sessão seguinte, ao descrever passionalmente a situação de uma colega deprimida, escutar do analista: “Você é a primeira comedora de emoções encontrada na clínica!”[12].

Dá-se assim a extração de seu modo de gozo oral, desprendendo-se de sua exigência pulsional de fazer o Outro falar.

As sessões analíticas passam a transcorrer no silêncio. O Outro não respondia e ela não precisava mais fazê-lo vibrar. É nesse momento que, entre duas sessões, experimenta uma vertigem que, ao relatar na análise, é tomada como um acontecimento de corpo. Deduz assim que quando o Outro se cala, o que se produz é a vertigem. O fato de depositar as suas lágrimas no compartimento vazio do Outro fora a maneira de ancorar seu corpo, mas ao preço de uma falsa consistência ontológica que retornava sobre o sujeito de forma devastadora.

Esclarece-se, aqui, a referência que Laurent faz ao comentário de Lacan sobre poema de Charles Baudelaire, As flores do mal, ao descrever o que está em jogo no arranjo fantasmático, no qual se teria “a um só tempo a ferida e a faca, a vítima e o algoz!”[13].

Desmontada a circularidade da fantasia, foi preciso mais uma fatia de análise para que o trauma se mostrasse em sua condição de acontecimento contingente do qual um elemento se destaca do discurso e vem selar um modo de gozo que jamais cessará.

É a partir de um sonho, em que a mãe informa que abandonaria a família, que uma lembrança da infância retorna e é relida de outra maneira. Na cena infantil, a família sairia de férias quando a menina é informada pela mãe de que apenas os pais e os dois irmãos mais velhos iriam, já que ela ficaria com a babá. A frase materna é pronunciada agora na sessão em voz alta: “Não há lugar para você!”. E em seguida um “É isso!”.

O analista diz então: “isso é um trauma!”.

Essa interpretação do analista faz ressoar o valor de gozo contido na materialidade da voz materna impresso no sonho. Uma voz que portava algo indescritível e que provocava vertigem. A analisante nomeará esse gozo opaco, veiculado pela voz da mãe, desenvoltura.

Essa palavra, desenvoltura, viria nomear tanto a forma leviana da mãe se dirigir à filha, como permitiria isolar no final da análise o acontecimento de corpo destacado de qualquer significado edipiano, mas correlacionado à contingência de lalíngua que vem imprimir no corpo um modo de gozo.

Com a desativação de certo resto sintomático, o sujeito pode, através da psicanálise, fazer um uso mais vivo de sua paixão de fazer o outro falar.

Desenvoltura me parece também mostrar o que Lacan nomeará, no Seminário 23, condançação[14], esse neologismo que escreve, na série de manipulações com a extimidade do gozo, uma dança do corpo com o sinthoma e da qual foi possível retirar da vertigem uma nova satisfação.

 

REFERÊNCIAS:

[1] LACAN, J. “Joyce, o Sintoma.” (1976) In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. p. 565.

[2] Ver em LAURENT, É. O avesso da biopolítica: uma escritura para o gozo. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016. p. 23.

[3] LACAN, J. O Seminário, livro 11:Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988, p. 63.

[4] SOUTO, S. “Como conceber a transferência na clínica do Um que dialoga sozinho?” In: Curinga n.47, Revista da Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Minas Gerais. Belo Horizonte, 2019. p.108.

[5] Ver em LAURENT, É. O avesso da biopolítica: uma escritura para o gozo. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016. p. 19.

[6] TEIXEIRA, A. “A interpretação nos tempos do falasser”. In: Boletim Ecos 4. Disponível em: https://www.jornadaebpmg.com.br/2021/a-interpretacao-nos-tempos-do-falasser/. Consulta em 14/10/2021.

[7] LACAN, J. O Seminário, livro 24: “L’insu que sait de l’unebévue s’aile à mourre” (lição de 19 de abril de 1977). In: Ornicar?, n.17/18, 1979, p. 12.

[8] LACAN, J. “O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada” (1945). In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. p.213.

[9] Macêdo, L. “Onde não há relação, qual laço?” In: Alvarenga, E. e Macêdo, L. Mutacões do laço social, o novo nas parcerias. EBP-MG: Belo Horizonte, 2021. p.30.

[10] Laurent, É. “Paixões religiosas do falasser.” In: Opção Lacaniana, n.75/76. São Paulo: Edições Eolia, 2017. p. 39.

[11] CAROZ, P.B. “Uma ‘A-PAIXONADA’”. In: Opção Lacaniana, n.58. São Paulo: Edições Eolia, 2010. p. 101.

[12] Ibid, p. 100.

[13] LAURENT, É. O avesso da biopolítica: uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016. p. 20.

[14] LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma (1975-1976). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. p. 150.

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