Invenção e sinthoma[1]
por Charles-Henri Crochet

Considerar, à maneira de Jacques-Alain Miller, “que uma literatura que especula sobre o sintoma, que o imita, é constituída de forma totalmente diferente daquela que se funda sobre a fantasia”[2] implica, para o corpo falante, consequências diferentes. O século XXI, em especial, dá corpo à segunda solução. Outras vias se engajam numa invenção menos ready-made. Em literatura, Joyce contra Sade, nos dá seu alcance.
O Marquês compõe com sua fantasia. Esse oculus através do qual olha o mundo é uma interpretação do desejo do Outro. Como um escriba, Sade copia ”a épura”[3] de uma “fábula”[4] congelada no cruzamento do desejo com a lei. Testemunha “uma técnica orientada para o gozo sexual”[5], verdadeiro tratado didático sobre a arte da perversão. O sentido pulula, os sentidos se agitam. Isso gira em círculos, ronca, range, até o “grelhado”[6]. Desde as primeiras páginas de Justine ou os males da virtude apreende-se “seu extravagante sistema”.[7] De fato, ele se dedicará a reescrever Justine… incansavelmente. Entregando-se impetuosamente a um trabalho colossal, ele opera uma prodigiosa exploração do imaginário à qual Lacan recorrerá em seu primeiro ensino. Do¨limbo da fantasia, Sade faz “literatura experimental”.[8]
Do lado de Joyce, a malha literária é totalmente outra. Sua invenção desafia a fantasia. A trama tecida por James Joyce não limita seu trabalho de escrita, pois aporta a estrutura mesma do sintoma. O Dublinenses se apoia em sua cidade[9] e na História, “pesadelo do qual tenta despertar”[10], mas para melhor se apoiar na letra.
Desde os primeiros ensaios teóricos de Joyce até Finnegans Wake, Lacan destaca “que uma certa relação com a fala lhe é cada vez mais imposta”[11]. Essas “epifanias”[12], espécies de gemidos, silvos, barulhos estridentes da língua que se faz estranha e estrangeira, o engajam num labor titânico. O herói das letras é então conduzido “a desafiar a gramática”[13]. Ele desarticula as línguas, decompõe a língua inglesa. Quebra a frase, esmaga o significante, e isso até “dissolver a linguagem”, pulverizando assim toda “identidade fonatória”[14]. No leito da letra, Joyce refunda a literatura e engendra assim um estilo a nenhum outro semelhante.
Ensinado pela arte de Joyce, Lacan negociará uma virada epistêmica consequente para a psicanálise. A escrita de Joyce revela a essência mesma do sintoma, segundo sua raiz helênica[15],- nomeado novamente sinthoma por Lacan -, que se torna assim a fabricação de uma medida com a qual se mensura um fim de análise.
Joyce decifra seu enigma à luz não de um porque existencial, mas de um como fazer com o corpo falante. Em Joyce, o significante e o corpo se disjuntam. O imaginário desliza e “só pode cair fora”[16]. Ele será testemunha dessa delitescência[17]. Em seguida a uma surra aplicada por seus pares, ele é despojado de seu envelope. Esse corpo que cai como uma casca ele o enlaçará, para fazê-lo se sustentar no entrelaçamento da escrita.
Sua dimensão criadora é de uma precisão literalmente cirúrgica. Ele inscreve sua arte no ponto mesmo em que a função simbólica falta. Para Joyce, esclarece Miller,
A língua não conseguiu se ordenar no regime do pai, e então ela se pôs a murmurar com ecos. A hipótese de Lacan é que este era o sinthoma de Joyce e que ele soube convertê-lo em produto de sua arte. Ele acolheu seu sintoma para fazer uso dele[18].
Querendo um nome, fazendo uso desse nome, Joyce compensa um pai fundamentalmente carente. Atrelado a um trabalho vital ao pé da letra, ele sustenta seu nome próprio disjunto do pai.
De sua solução sinthomática, Joyce faz um objeto de transmissão que, segundo seu voto, mobiliza os universitários. No apogeu de sua arte, ele encarna esse modo do escrito “a-não-ler”[19]. Em uma leitura pública de Finnegans Wake[20], ele oferece o precioso de seu ser, o agalma de sua arte:
Ouve-se aí, pela primeira vez: a flexibilidade; a audácia; a multiplicidade dos papeis; do grave ao agudo; do cochicho ao grito; [..] A récita de Finnegans Wake lido por Joyce [é] uma chave do mundo futuro[21].
REFERÊNCIAS:
[1]Texto originalmente publicado em Scilicet: O Corpo Falante – Sobre o Inconsciente no Século XXI. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, p. 180-183, 2016. Tradução: Cássia M.R. Guardado. A coordenação da 25ª. Jornada da EBP-MG agradece ao autor, psicanalista, membro da ECF-AMP, pela gentileza da sua autorização para publicação neste Boletim.
[2] .MILLER, J.-A. Extraits de la discussion après l’éxposé de J. Aubert: “Galerie pour um portrait” aux “Conférences du Champ freudien”. Analytica, Paris, n. 4, p. 16, 1977.
[3] LACAN, J. Kant com Sade. In: Escritos. Rio de Janeiro: JZE, 1998. p. 798.
[4] LACAN, J. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: JZE. 1988. p. 256.
[5] LACAN, J. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise, cit., p. 243. Na presente edição em português, falta a palavra sexual (N.T.).
[6] LACAN, J. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: JZE, 1992. p. 73.
[7] LACAN, J. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise, cit., p. 246.
[8] LACAN, J. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise, cit., p. 246.
[9] Cf. AUBERT, J. Introduction Générale. In: JOYCE, J. Oeuvres. Paris: Gallimard, 2006, p. XX-XXVI (Col. Bibl. de la Pléiade, t. 1).
[10] JOYCE, J. Ulysse. In: ____ OEuvres, cit., t.2 p. 38.
[11] LACAN, J. O Seminário. Livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: JZE, 2007, p, 93
[12] JOYCE, J. Stephen le Héros. In: _______. Oeuvres, cit.,t 1, p, 512.
[13] MILLER. J.-A . Extraits de la discussion après l´exposé de J. Aubert: “Galerie pour un portrait” aux “ Conférences du Champ Freudien”, cit.., p. 16.
[14] LACAN, J. O seminário, livro 23: o sinthoma, cit., p. 93.
[15] LACAN, J. O seminário, livro 23: o sinthoma, cit., p. 158
[16] LACAN, J. O seminário, livro 23: o sinthoma, cit., p. 147.
[17] JOYCE, J. Portrait de l’artiste en jeune homme. In:____. OEuvres, cit., t. 1, p. 611.
[18] MILLER, J.-A. Curso de orientação lacaniana: Piezas Sueltas (1997-1998). Buenos Aires: Paidós, 2013. cap. 2, p. 38. Lição de 24 de novembro de 2004.
[19] LACAN, J. Posfácio ao seminário 11. In:_____. Outros Escritos. Rio de Janeiro: JZ, 2003. p. 504.
[20] OGDEN, C. K. James Joyce reads “Anna Livia Plurabelle” from Finnegans Wake (1929). Cambridge: Studio Orthological Society. Disponível em: <https://archive.org/details/JamesJoyceReadsannaLiviaPlurabelleFromFinnegansWake1929. Acesso em: 23 mar. 2015.
[21] SOLLERS, Ph. Comme si le vieil Homére… . Le Nouvel Observateur, Paris, 6 fev. 1982. Disponível em: <www.pileface.com/sollers/spip.php?article744>.Acessoem:23 mar. 2015.